Na trilha das formigas: a força da palavra e a poiesis de Ana Maria Bernardelli

A poesia está viva! E vive feliz. Sim… e exemplo vital desta assertiva é o livro recém-lançado pela Editora Life: Na trilha das formigas, de Ana Maria Bernardelli, reunindo 89 poemas autorais inéditos e de refinada qualidade. Já conhecida como ensaísta e notável professora de literatura, a autora estreia agora como poeta consciente do seu mister, com elegância no estilo, percepção aguda, e com a intimidade com o texto literário que a caracteriza, ratificando vocação original e, enfim, competência no manejo do verso. Aliás, neste tocante, vale aqui relembrar aquela afirmação de Paul Valéry: “todos os poetas verdadeiros são críticos de primeira ordem”.

Foto: Divulgação

Assim, disciplinadamente sem alardes ou arroubos, Ana Maria chega com uma poesia timbrada com intensa substância anímica, a par de lúcida textura metafórica, em que as palavras ganham a completa liberdade para conceber significados novos, ampliando a valência semântica do raciocínio, situando os atentos leitores no íntimo do ser (na sede da alma, num plano privilegiado) e os nutrindo de experiências do belo espiritual, qual o ofício das formigas que, em suas trilhas, exploram os mais recônditos lugares e deles extraem o provimento para si e para outros em persistentes sonhos de libertação e esperança.

O temperamento estético e os ideais que animam a forte poesia bernardelliana vêm de uma sensível espiritualidade que se reflete na racional dosagem filosófica e, assim, muitos dos seus poemas abordam a dialética ‘eu/nós x orbe’, a hermenêutica existencial, a forma e o conteúdo/sentido da vida, numa perspectiva entre as conjunturas da mundanidade (“mesquinhos horizontes terrenos”) e os desígnios da essência, entre o habitat visível e o mundo interior, o espaço circundante e a atmosfera espiritual. Neste panorama, Ana aprofunda visões e intuições críticas no seio do cotidiano, no âmago do ser pessoal e da humanidade, perscrutando a sinergia que interliga o homem ao universo. Em ‘Na trilha das formigas’, caminhos e alvos que tecem os limites da condição humana, a interioridade do indivíduo e o caráter substancial da vida, a força e o objeto das múltiplas interatividades que nos cercam, são sondados no recinto dos poemas, com os olhos da razão, mas são re(a)presentados sob a perspectiva do amor. A voz da poeta, “que martela dura rocha”, que possui a noção de que “a arte tudo supera, providencia a paz”, bem assim, semeia – em várias páginas da obra – mensagens significativas suscitando a prática da virtude e do bem.

Ana Maria trata as nuanças do imaginário poético como substrato essencial da exegese criativa, e as palavras como criaturas íntimas do seu modus vivendi… e, destarte, com elas dialoga – de forma afetiva e efetiva – nas alamedas de inusitadas imagens e na sala de estar da sua casa, re/nomeando códigos e mistérios da existência, “preenchendo lugares indefinidos”, ao tempo em que concilia instantes de transitoriedade do cotidiano, passeando pelo infinito consubstanciado entre o silêncio e o verbo (o eco da solidão do poema), e recriando novos entrelugares de intuições nas sendas da linguagem: esta “morada do ser”, conforme postula Heidegger.

A modernidade da poesia de AMB também contempla lúcidos exercícios metalinguísticos, realçando elementos do fazer poético (a palavra da palavra, a poesia da poesia, a pa/lavra da poesia) e componentes estruturais da própria arte/inspiração literária, além dos reflexos do homo scribendi no semblante da sua criação. Aqui, caminha ela naquela trilha decantada por Octavio Paz: “o homem é tudo o que deseja ser: é imagem, núpcias dos contrários, poema dizendo-se a si mesmo… a imagem do homem encarnando o homem”. Esta consciente poetização da linguagem e/ou até do próprio ser/poeta/escritor fica bem situada na feição estética de certos textos do livro, como, por exemplo, em “Poética”, poema este de título homônimo àquele (emblemático) de Manuel Bandeira – do seu livro Libertinagem, de 1930.  E, se o citado poema de Bandeira é um lídimo manifesto metalinguístico da poesia moderna brasileira, o atual “Poética”, de Bernardelli, configura-se como sublime exaltação à intensidade do ato de poetar. Enfim, culminando o seu referido metapoema intertextualizado, a nossa autora anuncia assim numa estrofe: “àqueles que lançam ao mundo seus versos / saciar a sede veraz / regar o ressequido / renascer o antigo / é cingir o novel / é absorver a alma da resoluta poesia”.

É com propriedade e sensatez que a educadora, ensaísta e poeta Ana Maria Bernardelli assevera estas considerações do final do parágrafo anterior, pois – como poderemos constatar  Na trilha das formigas – é ela uma fiel iniciada nos mistérios da linguagem, genuína integrante da távola que congrega em ‘liberdade livre’ os “ávidos de frutos poéticos”, para quem “as horas do dia serão momentos, minutos, anos e eras de poder da palavra que nunca se gasta, na sombra e na luz, em encantamento perpétuo”.

Trilhando a trilha das formigas e os trilhos das palavras de Ana Maria Bernardelli, a ela dedico nesta ocasião este meu poema:

A MORFOSE DA META

               (para Ana Maria Bernardelli)

para alcançar a meta da criação

as formigas voam

                   encontram-se

e fecundam novas trilhas…

assim também

na part(r)ilha da linguagem,

algumas palavras criam asas…

palavras são formigas

com ‘asas de resistência’…

formigas são palavras

que conhecem os segredos das metáforas:

nas trilhas… pontilham horizontes,
transcendem ‘os sonhos do mundo’

                        e formigam poesia!

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*Rubenio Marcelo é poeta escritor e compositor, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, autor de várias obras publicadas, inclusive o livro ‘Vias do Infinito Ser’: indicado para o Vestibular 2021 da UFMS

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