Para Isabel: uma mandala, de Antonio Tabucchi

Romance póstumo do autor italiano apaixonado por Portugal é editado pela primeira vez no Brasil

Para Isabel: uma mandala, romance póstumo do autor italiano Antonio Tabucchi, traz uma trama vibrante que engenhosamente progride ao estilo de um quebra-cabeças, com uma aura detetivesca e metafísica.

Tal como numa mandala vários círculos concêntricos simbolizam a jornada rumo à unidade do eu, este romance mapeia a luta espiral pela verdade de uma história. O pano de fundo é um antigo amor entre o escritor polonês Tadeus Slowacki e a revolucionária portuguesa Isabel, cujo rastro perdido em tempos salazaristas desenha um retrato fragmentado desse período político sombrio.

Foto: Divulgação

Mas são as sombras da história particular de Isabel que estão no ponto focal deste enigmático enredo, numa investigação-peregrinação que quer levantar, um a um, os véus do sigilo feito necessário para uma perseguida por um regime ditatorial. Assim, ao final de cada capítulo — como um refrão que se repete — a personagem encontrada pelo protagonista aponta uma nova personagem-chave que faz a história avançar para um novo círculo

Carregado de inconformismos e intuições sobre o verdadeiro destino ou paradeiro da amada, o nosso herói inicia sua jornada em Lisboa (uma conhecida paixão de Tabucchi) e daí parte para viagens que vão ficando cada vez mais misteriosas, mas também cada vez mais sensoriais.

Os leitores sentem, então, o forte adocicado de um licor de tangerina em Macau que subitamente se mistura com uma água de cevada pedida na Brasileira do Chiado, ou o agudo incômodo de uns pífaros indianos soando em plena neve dos Alpes suíços, ou ainda o perfume encantador dos pitósporos num porto da Riviera italiana que também pode ser o porto lusitano da primeira despedida dos amantes. Ao onírico espacial junta-se um tempo também maleável, multidimensional, onde tudo pode se perder e se encontrar num repente.

Este é um romance em que a estranheza e a transgressão estão a serviço de uma grande reflexão sobre o tempo e a existência — sobre as obsessões, arrependimentos, inquietações e inadequações ao real daqueles que procuram. — Calí Boreaz​

SOBRE O AUTOR

Antonio Tabucchi, nascido em 1943 em Pisa, na Itália, foi escritor, crítico literário, tradutor e professor acadêmico de língua e literatura portuguesa na Universidade de Siena. Foi um grande apaixonado por Portugal, e é considerado o maior conhecedor, crítico e tradutor de Fernando Pessoa na Itália, tendo sido o responsável pela edição italiana de sua obra, juntamente com sua esposa, a portuguesa Maria José de Lancastre. Ele também traduziu um livro de poemas do brasileiro Carlos Drummond de Andrade (Sentimento del mondo, Einaudi, 1987).

Foi agraciado com diversos prêmios, tanto nacionais quanto internacionais; destacam-se o Prix Médicis étranger e o Prix Européen de la Littérature na França, o Aristeion na Grécia, o Nossack da Academia Leibniz na Alemanha, o Europäischer Staatspreis na Áustria e os prêmios Hidalgo e Cerecedo na Espanha. Na Itália, recebeu o prêmio Salento em 2003 e o Frontiere-Biamonti em 2010. Foi também finalista do Man Booker International em 2005 e 2009. Seus romances e ensaios foram traduzidos para mais de vinte idiomas, e alguns de seus livros foram adaptados para o cinema.

A Editora Estação Liberdade tem pela frente a edição e reedição da obra de Tabucchi no Brasil, iniciando com Afirma Pereira, em 2021, e agora com Para Isabel: uma mandala; e seguindo com ‘Os três últimos dias de Fernando Pessoa’, ‘A cabeça perdida de Damasceno Monteiro’, ‘Mulher de Porto Pim’, ‘Os voláteis do beato Angélico’, ‘Noturno indiano’ e ‘Tristano morre’.

Faleceu em 2012, em Lisboa, Portugal

TRECHOS

“Obsessões privadas, arrependimentos pessoais que o tempo rói mas não transforma, como a água de um rio lima seus seixos, fantasias incongruentes e inadequações ao real são os principais móveis deste livro. Mas não nego que ter visto um monge vestido de vermelho, o qual, numa noite de verão, com seus pós coloridos, desenhava para mim, na pedra nua, uma mandala da Consciência, teve influência sobre ele. E ter tido a oportunidade, naquela mesma noite, de ler um breve escrito de Hölderlin que estava fazia um mês na mala sem que eu encontrasse tempo de lê-lo.” (p. 13, palavras do próprio autor em nota que prefacia o livro)

“Eu nunca tinha estado no Tavares em toda a minha vida. O Tavares é o restaurante mais luxuoso de Lisboa, com espelhos oitocentistas e cadeiras de veludo, a cozinha é internacional mas há também a cozinha portuguesa típica, preparada de modo delicado, por exemplo, você pede mariscos com carne de porco, como se faz no Alentejo, e eles preparam como se fosse um prato parisiense, pelo menos era o que me haviam dito. Mas eu nunca estivera lá, só ouvi falar. Peguei um ônibus até o Intendente. A praça estava cheia de putas e cafetões. Era o final da tarde, eu estava adiantado. Entrei num café antigo que eu conhecia, um café com sinuca, e comecei a olhar a partida. Havia um velhinho perneta que jogava apoiado numa muleta, tinha os olhos claros e os cabelos crespos e brancos, acertava os pinos como se tomasse um copo d’água, fez uma limpa em todos os presentes e depois se sentou numa cadeira e deu uma batidinha na barriga como se estivesse fazendo a digestão.” (p. 17)

“O fotógrafo me olhou e tive a impressão de que pairava novamente um ar irônico em seu rosto. Tinha uma terceira fotografia presa entre os dedos como uma carta de pôquer, porém não a mostrou. Disse apenas: deixe-me filosofar, pelo menos sobre esta última foto, lembrei-me que alguém disse que a fotografia é a morte porque fixa um instante irrepetível. Passou a fotografia entre os dedos, como se fosse mesmo uma carta de baralho, e continuou: mas depois ainda me pergunto: e se, pelo contrário, fosse a vida?, a vida com sua imanência e sua peremptoriedade que se deixa supreender num instante e nos olha com sarcasmo, porque está ali, fixa, imutável, enquanto nós é que vivemos na mutação…” (p. 80)

“A alameda do jardim estava deserta. Havia um velho guardião chinês com um chapeuzinho com aba de plástico onde estava escrito: Gruta de Camões./ Estamos fechando, disse o guardião, vou fechar os portões. Não preciso de muito tempo, tentei dizer sorrindo, só uma voltinha até a gruta de Camões. Ele respondeu com lógica: por que visitar a gruta de Camões a esta hora?, venha amanhã cedo, o jardim é fresco, a gruta é fresca, amanhã cedo pode aproveitar o fresco, agora só há os morcegos dormindo. Sim, entendo, respondi eu, mas acontece que preciso visitar a gruta ainda hoje, tive uma inspiração.

O guardião tirou o boné e coçou a cabeça. Não entendo, disse. Como é seu nome?, perguntei. Ele esboçou um sorriso tímido. No registro me chamo Manuel, respondeu, porque no registro temos nomes portugueses, mas meu nome de verdade, o chinês, é outro. Pronunciou um nome chinês e sorriu de novo. E o que significa seu nome em chinês?, perguntei. Quer dizer Luz que Brilha sobre a Água, respondeu ele. Pareceu-me uma excelente ocasião e o tomei pelo braço. Ouça, Luz que Brilha sobre a Água, disse eu, também tenho uma luz que brilha, e é aquela luz que me diz para entrar na gruta justo hoje à noite, vê lá em cima? Estendi o braço e apontei uma estrela cintilante, a mais cintilante do céu. (p. 85)

“Mas quem é o senhor?, perguntou ele olhando fixo para mim. Aquilo que está escrito no bilhete, respondeu, sou Tadeus. Não o conheço, retrucou ele. Mas o senhor conhecia Isabel, disse eu, foi por isso que me recebeu em seu apartamento, o nome de Isabel o deixou curioso. Isabel pertence ao passado, respondeu ele. Pode ser, disse eu, entretanto estou aqui para reconstruir esse passado, estou fazendo uma mandala.” (p. 125)

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