Entre o Titanic e o Titan

Até parece coisa de tantãs: alguns homens poderosos gastam milhões (senão bilhões) de dólares para fazer turismo surreal nas profundezas do oceano ou no espaço sideral enquanto milhões (senão bilhões) de seres humanos travam luta sem fim sem saber se conseguirão sobreviver àquele dia.

Entre 1912 e 2023 não se passaram ‘apenas’ 111 anos, mas aconteceram inúmeros fatos, transformações indescritíveis — além, obviamente, das que puderam ter sido registradas pela pretensa inteligência humana — que mudaram os destinos da humanidade.

No alvorecer do século passado, quando da tragédia daquela que seria a mais eloquente prova da capacidade inventiva humana, o mundo despertava para significativas mudanças do cotidiano, mas também as maiores tragédias que abateram a humanidade causadas por iniciativas humanas.

Os primeiros veículos mais pesados que o ar, isto é, os aviões; as primeiras transmissões radiofônicas; os primeiros carros, caminhões, jardineiras, utilitários; os primeiros trens elétricos; as primeiras usinas hidrelétricas; os primeiros antibióticos, as primeiras vacinas para epidemias temidas, como poliomielite, sarampo, tétano, coqueluche e meningite; as primeiras geladeiras, rádio receptores, toca-discos, alto-falantes; os primeiros periódicos ilustrados, impressos em cores; as primeiras transmissões ao vivo em cadeia mundial; as primeiras fotografias com imagem reproduzida à distância pelo rádio ou por telefone (radiofoto ou telefoto); os primeiros discos as primeiras produções cinematográficas; os primeiros transplantes de coração, rins, córneas e outros órgãos humanos; os primeiros registros da história do processo de urbanização (aumento da população urbana e redução da população rural); os primeiros grandes eventos artísticos, esportivos e de celebrações; a Declaração dos Direitos Humanos da ONU; a Declaração dos Direitos da Criança; a Declaração dos Direitos da Mulher; a Declaração dos Direitos dos Povos Originários; a Carta da ONU contra o Racismo, Contra a Fome, a Agenda 21, a Carta da Terra e tratados sobre o clima e o meio ambiente,  etc.

O chamado ‘período entre guerras’ (de 1914 a 1945) teve como principal fator propulsor a crash, ou queda da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, que não poupou vítimas em todo o mundo. A debacle, ou desastre, teve um impacto tão grande quanto o naufrágio do Titanic: centenas de milhares de empresários de todos os tamanhos não resistiram e foram a pique, até porque os governos nacionais não conheciam mecanismos de mitigação para atenuar a repercussão contra a quebra do sistema financeiro internacional.

Nessa época, o mundo era constituído de diversos impérios coloniais — britânico, francês, belga, japonês, russo e turco-otomano, estes dois últimos derrocados no final da Primeira Guerra Mundial –, e as revoluções Bolchevique, Indiana e Chinesa (que deram origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, República da Índia e República Popular da China, desde a primeira metade do século passado) começava a repercutir por todos os continentes, em especial nas lutas dos movimentos de emancipação nacional na Ásia (Síria, Iêmen, Palestina, Líbano, Iraque, Irã, Coreia e Indochina, sobretudo Vietnã e Camboja), África (África do Sul, Rodésia, Botsuana, Egito, Argélia, Líbia, Tunísia, Tanzânia, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique) e América (Cuba, Panamá, Porto Rico, Nicarágua, Costa Rica, Haiti, El Salvador, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Chile, Venezuela, Uruguai e Equador).

Ainda que timidamente, o Brasil deu sua contribuição nos anos 1920 a 1970, mas as ditaduras do estado novo e do regime de 1964, ambas de inspiração fascista, causaram retrocessos (como o experimentado entre 2016 e 2022). Além do reconhecimento de brasileiros como Luiz Carlos Prestes, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, os nomes de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva são vistos com muito respeito, ao lado de Paulo Freire, Oscar Niemayer, Josué de Castro, Milton Santos, Joel Rufino dos Santos, Darcy Ribeiro, Edson Arantes do Nascimento (Pelé), Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Wega Nery, Lígia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz, Cecília Meirelles, Florinda Bolkan, Maurício de Sousa etc.

Mas o pior é que no rastro da crise econômica nasceu a cultura do nacionalismo extremista e a intolerância perniciosa. Na Alemanha e na Itália, os dois Estados tardios a se constituir na Europa, o nazismo e o fascismo delirantes e perversos, são pivô de tragédias da primeira metade do século que deveria ser apenas de bem-estar para todos os habitantes do globo terrestre. Campos de extermínio, Estado policial, perseguições perversas com requintes de crueldade, ufanismo deslavado e delírios supremacistas, armas de destruição em massa teleguiadas. Nos Estados Unidos, a obsessão da minoria puritana branca por dominar o mundo, valendo-se de desertores nazistas, como Werner Von Braun e associados, e assim copiar a nefasta bomba atômica que os nazistas não tiveram coragem nem tempo para despejar sobre seus inimigos durante a guerra, mas os ‘democratas’ estadunidenses, sim.

Por certo, o que mais tenha marcado o século XX, também século da ascensão e colapso de experiências revolucionárias socialistas (mas também de tragédias protagonizadas pelo nazifascismo, como o extermínio, em maior ou menor escala, de Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Stroessner, Medici, Banzer, Pinochet, Videla, Bermúdez e García Meza) tenha sido o desenvolvimento tecnológico, mas restrito a uma reduzida parcela da população. O bem estar proporcionado pelo progresso da ciência e dos valores civilizatórios foi aos poucos se distanciando tanto das amplas maiorias da população humana e o que deveria ser para todos acabou sendo privilégio para uns poucos.

Até a democracia acabou dando lugar à plutocracia. A Europa pretensamente civilizada foi capaz de protagonizar, além dos campos nazistas, as experiências mais indignantes de tráfico de seres humanos para fins de trabalho escravo e de exploração-opressão dos povos originários (o comércio escravista e o saque colonizador que deu às elites ocidentais muito dinheiro e poder ao preço de genocídio, etnocídio e extermínio cultural insólito). Quando a União Soviética chegou ao colapso e os países do Pacto de Varsóvia dissolveram sua união depois de vencer a Alemanha nazista e a Itália fascista, numa espúria expansão da OTAN, como que vivêssemos ainda na guerra fria, imprimiram sua vocação hegemonista colonial para manter todos os povos e nações ‘inferiores’ a serviço deles.

A humanidade, contudo, é generosa tal como a natureza, e sempre dá mais uma chance aos néscios, arrogantes e soberbos. A despeito da tirania impregnada em todos os povos submetidos ao seu jugo, a Europa que depois de viver na miséria durante a Idade Média e desconhecer o legado dos povos que lhe compartilharam o conhecimento da Idade Clássica em bandeja de ouro e as riquezas literalmente de ouro e prata, além dos alimentos que saciaram a fome milenar de suas nações, teima em perpetuar a tirania e a opulência.

O tristemente célebre transatlântico Titanic e a tragédia que interrompeu vidas e sonhos de centenas de seres humanos de diferentes classes sociais, nacionalidades, convicções e credos em 1912 e o trágico fim da tripulação do submersível Titan, dias atrás, perto do que resta daquilo que um dia foi o ‘maior barco de passageiros construído pelo homem’ têm os mesmos contornos de delírio, pretensão e imbecilidade que dominam certa parcela da população humana e sua insana obsessão por ‘dominar o mundo’. Mas a humanidade é maior que a insanidade desses seres soberbos, e a sonhada emancipação de nossa espécie (e das demais, igualmente submetidas ao seu jugo) haverá de iluminar o porvir de nossos descendentes.

 

*Ahmad Schabib Hany

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