Vargas e a busca do desenvolvimento nacional autônomo

Promotor público (1897); deputado estadual (1909–1922) pelo Partido Republicano Rio-Grandense (PRR); depois deputado federal (1923–1926); ministro da Fazenda de Washington Luís (1926); governador do Rio Grande do Sul (1928); chefe civil da “revolução” de 1930 que depôs Washington Luís, encerrou o ciclo da República Velha — fundada na grande lavoura e na mentira eleitoral — e impediu a posse de Júlio Prestes. Fez-se chefe do Governo Provisório (1930–1934); ditador (1937–1945); deputado federal por cinco Estados (1946); senador da República pelo RS (1946–1951) e presidente constitucional (1951–1954), eleito em pleito consagrador.

Eis alguns indicadores da vida política do estadista Getúlio Dorneles Vargas, o mais longevo dos grandes políticos da República, aquele que mais cargos exerceria, que por mais tempo ocuparia a presidência — 18 anos — e que por mais tempo estaria presente na realpolitik e no imaginário das grandes massas. Foi o centro da vida do país de 1930 a 1954, e sua influência se faz notar ainda em nossos dias, passados 71 anos de sua morte.

A ditadura militar (1964–1985) se anunciou como sua negação e, redemocratizado o país, o governo neoliberal de FHC prometeria, como projeto, “o fim da era Vargas”.

Tomando o destino em suas mãos, o velho caudilho frustrou a República do Galeão e, com sua decisão final — não podíamos antever então —, adiou por dez anos a ditadura militar que se instalaria em 1º de abril de 1964, antecedida pelos ensaios do 11 de Novembro de 1955 (deposição de Café Filho e posse de Juscelino Kubitschek) e da Crise da Legalidade (1961), para nos atormentar por 21 anos. O impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, a ascensão do bolsonarismo e a intentona de janeiro de 2022 são indicações concretas da sobrevivência, entre nós, do mal-estar democrático.

Personagem sem par no cenário político, caráter exemplaríssimo e ao mesmo tempo múltiplo, ambíguo e contraditório, Getúlio Vargas conheceu os aplausos e as críticas da esquerda e da direita; afagou trabalhadores e empresários, sem conquistar a confiança destes. Levou a Força Expedicionária Brasileira aos campos de batalha na Itália para defender a democracia como princípio, quando comandava em seu país a ditadura do Estado Novo, de inspiração fascista, sustentada militarmente por dois generais germanófilos, Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, seus homens de confiança que o deporiam em 1945, valendo-se dos ventos democráticos soprados pelo fim da guerra e a derrota do nazifascismo.

A Carta do Estado Novo, mediante a qual o novo regime se institucionaliza, ficaria conhecida como “a polaca”, em face de sua clara inspiração na constituição polonesa de 1935, fruto do autoritarismo de Józef Pilsudski. O redator da versão brasileira foi o jurista mineiro Francisco Campos, integralista, que, não por acaso, seria convocado pelos generais para, em 1964, redigir o Ato Institucional que institucionalizou o mandarinato militar.

Em 1935, Vargas enfrentou um levante militar comunista, utilizado como justificativa para o golpe de 1937. Em 1938, foi vítima do putsch integralista, a horda fascista comandada por Plínio Salgado, com a qual namorara. Entre um assalto e outro, enfrentou o levante paulista de 1932 contra a modernização, falsamente registrado pela historiografia como “Revolução Constitucionalista”. Venceu a guerra, mas jamais conseguiu convencer o empresariado (ontem, como hoje, aferrado ao atraso) de que tentava salvar o capitalismo, modernizando o Estado.

Suas iniciativas não despertaram a empatia da burguesia industrial aqui instalada, assustada com o papel do Estado como agente de desenvolvimento. As leis trabalhistas, se conciliavam a díade capital-trabalho, supostamente encareciam o custo da mão de obra (é o que se diz ainda hoje!), e o sindicalismo, mesmo sob controle, dava voz aos trabalhadores, o que incomodava. De outra parte, as iniciativas na ordem econômica provocaram resistência dos interesses político-econômicos dos EUA, interesses que falaram em 1945 e em 1954, e voltariam a falar em 1964, como estão gritando, mais alto do que nunca, em 2025.

Filho da oligarquia gaúcha, Getúlio chefiou uma revolução destinada a combater o reacionarismo da política do café com leite, que controlava a economia e a política nacionais, mas terminou conciliando com os interesses da lavoura paulista e os pecuaristas mineiros. Estancieiro, fez-se protetor dos trabalhadores urbanos — industriais de preferência —, mas não conheceu a tragédia do campo e dos camponeses. Comandou, e com ela conquistou o poder, uma revolução que, dirá, jamais desejou.

Em seus diários — os seus e todos os diários de estadista, escritos para serem divulgados um dia — aparentemente iniciados no dia 3 de outubro de 1930, data da deflagração da “revolução” (Getúlio Vargas – Diário. Siciliano/FGV Editora, 1995, vol. I), ainda inseguro quanto aos passos que estava condenado a dar, pergunta à História: “Que nos reservará o futuro incerto neste lance aventuroso?” Prossegue, na mesma data: “Aproxima-se a hora. […] Não terei depois uma grande decepção? Como se torna revolucionário um governo cuja função é manter a ordem? E se perdermos?” No dia 20/10, já em meio à marcha, monologa: “Quantas vezes desejei a morte como solução da vida! E, afinal, depois de humilhar-me e quase suplicar para que outros nada sofressem, sentindo que tudo era inútil, decidi pela revolução; eu, o mais pacífico dos homens, decidido a morrer”.

Nenhum outro dirigente brasileiro assimilou tão bem e tão naturalmente quanto ele a ideologia da conciliação, embora nenhum outro tenha logrado tantos avanços sociais. Falava pouco, ouvia muito. Era cuidadoso com seus discursos, quase sempre lidos. Seus biógrafos consagram a habilidade como sua principal arte política, que os adversários, jejunos nos conceitos do filósofo florentino, chamaram de “maquiavelismo”. No entanto, quando deixou definitivamente o poder, era um homem inapelavelmente só. Na última reunião de seu gabinete, no Palácio do Catete, na madrugada de 23 para 24 de agosto de 1954, no amplo salão vazio embora repleto de presenças, viu-se abandonado até mesmo por aqueles em quem mais precisava confiar. Nas ruas, havia quase um mês, comunistas, udenistas e liberais, estudantes e intelectuais, animados pela quase unanimidade da imprensa, exigiam sua renúncia. Este era o discurso majoritário no Congresso e nas conclamações militares. Os trabalhadores permaneciam em casa. Só saíram às ruas quando o féretro caminhava na direção do aeroporto Santos Dumont, para a viagem derradeira a São Borja.

No bifrontismo da política gaúcha, Getúlio torna-se figura de destaque da oligarquia chefiada por Borges de Medeiros; sua fundamentação doutrinária é o castilhismo, de formação positivista, de onde possivelmente decorre sua visão do papel do Estado — forte, centralizador e intervencionista, e ao mesmo tempo paternalista e agente de desenvolvimento, além de implacavelmente repressor, como foi nas razias contra comunistas e integralistas. No final da vida, concilia-se com a democracia representativa..

Autoritário e, ao mesmo tempo, sensível às massas, trouxe para a cena política os interesses dos trabalhadores,  implantou políticas sociais e colocou na pauta republicana, pela vez primeira, as questões sociais: deve-se a Getúlio Vargas uma legislação trabalhista e previdenciária de nascença avançada em face do atraso econômico e social do país. Alvo sempre da reação conservadora, é ainda hoje, mesmo esfarrapada, vítima da sistemática depredação do neoliberalismo.

Deve-se a Vargas a criação da carteira de trabalho (1932), a jornada de oito horas (1932), o salário mínimo (1940), a CLT (1943), a estabilidade no emprego após dez anos de vínculo (revogada na ditadura), a remuneração das férias com salário integral e sua extensão para 20 dias anuais. Tudo isso em país de industrialização incipiente, inserto numa formação capitalista atrasada, na periferia da economia internacional e então, ainda mais do que hoje, subordinado aos limites de uma economia agrária exportadora.

Foi esta a base do trabalhismo varguista, acusado de “populista” (o caudilho passaria à história como “pai dos pobres”), combatido sempre pela direita e pela coorte conservadora, lá atrás também pelo Partido Comunista e pelo Partido dos Trabalhadores, desde sua fundação. O udenismo reacionário de Eduardo Gomes e Carlos Lacerda fez-se a sua contraface.

Fora de dúvida, porém, é que se tratava de um trabalhismo funcional, integrado a uma estratégia de conciliação de classes mediante o apaziguamento dos conflitos com o capitalismo. Seu modus operandi era o controle dos sindicatos pelo aparato estatal-burocrático, ao encargo do Ministério do Trabalho. Esse esforço, contudo, jamais foi compreendido pela classe dominante, divorciada de qualquer projeto de desenvolvimento nacional minimamente autônomo.

Para além do apelo popular do trabalhismo varguista, que ainda sobreviveria com João Goulart e Leonel Brizola, sua grande contradição com a classe dominante e o imperialismo tinha raiz no projeto de desenvolvimento associado à defesa da soberania nacional. É fácil explicar: a esse projeto, que se dirá nacionalista, devemos a modernização do país via ação do Estado — Companhia Siderúrgica Nacional (1941), responsável pela produção nacional de aço, insumo básico para a indústria (privatizada em 1993, no governo Itamar Franco); Companhia Vale do Rio Doce (1942), estatal estratégica na exploração e exportação de minério de ferro (privatizada em 1997 por FHC); a criação do Instituto do Açúcar e do Álcool (1933), do Conselho Nacional do Petróleo (1938) e do IBGE (1936).

E, na boa linha da CEPAL e de Raúl Prebisch, a política nacional de substituição de importações — fundamental, naquela altura, para sustentar o esforço industrializante.

Politicamente, sua marca, a que fica, é o nacionalismo: o desenvolvimento econômico autônomo como instrumento de defesa da soberania nacional foi o eixo ideológico de sua Carta-Testamento, esquecida pelos trabalhistas de hoje, nestes tempos em que parece tão atual sua mensagem. Quando o imperialismo, declinante e ameaçado, e por isso mesmo ameaçador, se mostra mais agressivo e a reação nacional se revela tão tímida.

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Make America Great Again — As agressões de Donald Trump ao Brasil, espúrias no conteúdo e na forma, já causam prejuízo bilionário ao nosso país, e lançam um alerta sobre a manutenção dos níveis de emprego e da produtividade. Além das tarifas, elas compreendem declarações intervencionistas, notas provocativas e o expediente mesquinho da suspensão de vistos. A elas vem se somar, agora, a aproximação de um aparato militar à costa da vizinha Venezuela, fato a que o Brasil, sem tropas e sem serviço de inteligência, assiste em estado de perplexidade. Neste contexto, Tarcísio de Freitas, governador de SP — o estado brasileiro mais afetado pelo tarifaço — e pré-candidato da classe dominante à presidência da república, permite-se sair com esta: “Ele [Trump] está querendo colecionar vitórias. Então, por que não entregar alguma vitória para ele? Por que não fazer algum gesto?” É a viralatice escrachada, sem pejo nem medo do ridículo.

As consequências vêm depois, ensinava o Conselheiro Acácio  Em discurso de 1977, Deng Xiaoping, ideólogo da abertura econômica chinesa, pondo de manifesto o atraso de seu país em face do desenvolvimento das grandes potências, ditou o que deveria ser feito: “A chave para conquistar a modernidade é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. E, a menos que prestemos especial atenção na educação, será impossível desenvolver a ciência e a tecnologia”. Em 2020, a China investia em Ciência e Tecnologia 2,4% de seu PIB (US$ 14 trilhões) e o Brasil 1,2% de seu PIB (R$ 1,449 trilhão). Em 2025 o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação sofreu um corte de 25%, atendendo às ordens do “ajuste fiscal”.

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*Com a colaboração de Pedro Amaral

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