“É mister bater, bater cem vezes, e cem vezes repetir: o direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade”. Tobias Barreto. Ideia do direito, 1883.
O sionismo massacra o povo palestino dizendo que pune os guerrilheiros do Hamas, a resistência possível em meio ao desespero. A chamada “civilização ocidental” (mais indigna que nunca do título pomposo que se autoatribuiu) assiste, cúmplice, a uma limpeza étnica que muito lembra a paranoia nazista, interrompida com a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial. Vai além do genocídio armênio (1915-1917), da partilha da Índia (1947), da tragédia da Bósnia levada a cabo pelo Ocidente (1992-1995), aproveitando-se do intocado vazio deixado pela falência da URSS.
A Europa, decadente, mas ideologicamente ainda colonialista, embora servil ao Império, silencia diante de Gaza e condena o Irã pelos ataques que lhe movem EUA e Israel. A invasão da Ucrânia pela Rússia é definida como agressão a um Estado soberano, mas os bombardeios contra o Irã, que não atacou nem invadiu o território do adversário implacável, são considerados – nessa lógica viciada e hipócrita – legítimos, embora a Carta da ONU não tenha sido alterada nesse ínterim. Como condição para a paz necessária, a Europa e os EUA exigem que o país invadido não revide os ataques de que é alvo, e aceite uma capitulação incondicional, sob o risco de bombardeios avassaladores. A agressão, vendida como autodefesa, transmuda-se em virtude: o agressor é defendido e a vítima é condenada por defender-se.
Este é um tempo de subversão de valores, pois só se ouvem, só se leem e só se veem as razões do agressor. Como nos lembra George Orwell, em 1984: “Se todos os registros contam a mesma história – então a mentira torna-se verdade.” E, portanto, já não há mais nem uma coisa, nem outra. Reescreva-se a velha fábula: a vítima é o lobo.
A invasão do Irã (exigida há anos pelos media outlets) foi preparada durante largos meses, partilhada em seus pormenores táticos e estratégicos com os EUA e conhecida pela OTAN, o gigantesco porta-aviões do Império na Europa. No entanto, Emmanuel Macron, presidente de um país que realizou uma revolução para proclamar a trindade da liberdade, da igualdade e da fraternidade, reduz a agressão a mero “exercício do legítimo direito de defesa de Israel”, e a Alemanha, que inventou os fornos crematórios como destino dos adversários de sua escolha, antecipou-se a todos, condenando o Irã pelo que seu chanceler qualificou de “um ataque indiscriminado ao território israelense” – mesmo antes de Teerã responder ao bombardeio israelense!
Sem pejo, o Estado de S. Paulo, reflexo brasileiro da mainstream media, se permite afirmar: “O programa nuclear iraniano é uma ameaça existencial a Israel e, por isso, é um alvo legítimo. Ademais, interromper a escalada nuclear do Irã será um alívio para o mundo” (15/06/25). É preciso meditar sobre as consequências das premissas do que propõe a oligarquia paulista: se um Estado, sentindo-se ameaçado, pode esmagar o suposto adversário, tudo passa a ser permitido, e a invasão da Ucrânia pela Rússia é, assim, mais do que justa: necessária, e, por isso, moralmente justificada. Na mesma linha, a Rússia pode se sentir existencialmente ameaçada pelos dentes atômicos da França e da Grã-Bretanha, e daí tornar-se-à legítimo o bombardeio preventivo, de que também podem lançar mão, simultaneamente, o Paquistão e a Índia, avançando rumo à destruição mútua.
Diante da agressão dos EUA e de Israel, uma conclusão se impõe: se o Irã não possui armas nucleares (e só foi atacado porque provavelmente não as tem), agora está claro que precisa tê-las. E mostra-se acertada a custosa estratégia defensiva da República Popular da Coreia, pequenino país sobrevivente de uma guerra de extermínio que, apesar de tudo o que a realidade mostra, segue sendo pintado pela mídia ocidental como grande ameaça à paz mundial…
Em convescote nas Montanhas Rochosas do Canadá, os países do chamado G7 (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido) saúdam os bombardeios, indiferentes às mortes de civis, tudo porque, segundo eles, Israel tem o direito de defender-se de um ataque que não houve, mas que poderia ter havido – e um dia poderá haver. É a razão cínica do mais forte escrevendo a história, sempre obra dos vencedores, com a licenciosidade moral de uma Europa envilecida à sombra do guarda-chuva nuclear dos EUA, de mãos livres no desfrute de um império tanto mais perigoso quanto mais vê ameaçada sua hegemonia.
A história se repete ao seu modo. Em 1938, os nazistas, sob o pretexto de que alemães estariam sendo perseguidos na Tchecoslováquia, invadiram os Sudetos, depois que o Acordo de Munique (“a paz por cem anos”, anunciada pela covardia inglesa) atapetara o terreno para a beligerância do 3º Reich. Em 2003, os EUA, que financiam, escoltam, armam Israel e operam militarmente na defesa de seu espaço aéreo, bombardearam e invadiram o Iraque, porque ele – há sempre um pretexto a aventar – possuiria armas atômicas, como aquelas que em 1945 os EUA (até hoje o único país a cometer esse crime) lançaram contra as populações civis de Hiroshima e Nagasaki.
O pretexto então alegado por Harry Truman para o massacre ignóbil era a necessidade de antecipar o fim da guerra, já definida com a queda de Berlim, mas a realidade ensinou que se tratava do vestibular da Guerra Fria. Evitando o confronto direto, os EUA diziam à URSS que o Exército Vermelho deveria conter sua marcha na Europa.
É a razão do lobo, a lei do mais forte consagrada nas fábulas de Esopo, reescritas por La Fontaine:
“Um lobo, com fome, vê um cordeiro bebendo água num riacho, mais abaixo. O lobo o acusa de sujar a água que ele (o lobo) está bebendo. O cordeiro responde, respeitoso: ‘Como posso sujar a água que bebes, se estou rio abaixo de ti?’ O lobo, então, muda a acusação: ‘Tu falaste mal de mim no ano passado.’ O cordeiro retruca: ‘Não poderia ter sido eu. Eu nem era nascido!’ O lobo, cada vez mais agressivo, inventa outras desculpas: ‘Então foi teu irmão. Ou teu pastor. Ou tua gente.’ Por fim, sem qualquer razão, o lobo ataca e devora o cordeiro.”
Para os lobos de hoje, os palestinos não deveriam estar onde sempre estiveram. O Irã se condenou à morte ao saltar fora da órbita desenhada pelo Pentágono para a Pérsia, quando a Revolução Islâmica, em 1979, pôs por terra a monarquia e instalou a república ao depor o xá Reza Pahlavi, no poder desde 1941, e chefe de uma ditadura sanguinária pró-Ocidente a partir da deposição do primeiro-ministro Mohammad Mossadegh pela CIA em 1953.
Tratar-se-ia de irrelevância fática a discussão segundo a qual o Iraque teria ou não armas nucleares (e de fato não as tinha), quando o fundamental era a acusação em si – comprovável ou não – de que Saddam Hussein possuía esse arsenal. De igual modo, hoje, é irrelevante apurar se o Irã detém ou não capacidade de enriquecer urânio, se amanhã, poderá construir um artefato nuclear e, ademais, se tem ou terá condições de atingir o território israelense. O relevante, para o sionismo e o trumpismo, que se fundem, é a construção política de um pretexto para justificar a agressão que a ideologia hegemônica reduz a mero exercício do legítimo direito à “autodefesa”, direito do qual, porém, Israel é o único portador no Oriente Médio.
Quando se comprovou que o Iraque não possuía armas nucleares, o país já havia sido devastado e a história se debruçava diante de um fato consumado. Hoje, combater a resistência palestina é o pretexto para o genocídio desse povo, a morte a granel de jovens, mulheres e principalmente crianças e a destruição de Gaza, futuro espaço livre terraplenado para os investimentos imobiliários de Trump.
A vida humana vê-se relegada à sua insignificância diante do poder avassalador da barbárie: o próximo passo é na direção do precipício sem chão.
É a lógica orwelliana da inversão da linguagem, que o escritor inglês vai beber em Ésquilo (525-456 a.C.): “Na guerra, a primeira vítima é a verdade.” O objetivo da guerra não é apenas derrotar o inimigo nas armas, tomar seu território, mas, também, conquistar “corações e mentes”. Os EUA sustentaram por anos que matavam os vietnamitas para salvá-los dos comunistas – o mesmo pretexto alegado para a invasão da Coreia (1950) e tantas outras invasões, diretas ou por procuração, e de tantos golpes de Estado.
A vitória ideológica permite sustentar como coerentes ideias contraditórias entre si, oximoros como “guerra é paz”, “ataque é autodefesa”, “agressor é vítima”. Por fim, manipular a linguagem para legitimar a razão do lobo, em que se esmeram os meios de comunicação de massa, tanto mais contundentes e tanto mais aparelhos ideológicos da classe dominante quanto mais modernos.
Quando Israel, secundado pela chamada opinião pública global, afirma que invadiu Gaza, ou bombardeou o Irã, ou o Líbano, ou a Síria, ou o Iêmen, para impedir um ataque que não houve (tratando como realidade uma ameaça fabricada), o mundo ingressa no que George Orwell definiu como lógica do duplipensar.
A “ordem baseada em regras” – o Direito Internacional – passa a ser regida por “regras” condicionadas pela razão do mais forte, que consagra o crime preventivo, punindo intenções que o agressor diz identificar nas mentes dos adversários que, para esse efeito, elege.
A razão do mais forte é sempre a melhor, pois é a que se impõe. Assim como o direito é o léxico da força que chegou ao poder. Não havendo limite ético ao poder, tudo está justificado, desde que tenha tido bom êxito – como lecionou Espinosa, o filósofo que a Inquisição portuguesa doou à Holanda.
Ao vencedor, as batatas.
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Solidariedade ao agressor – Permanecem ativas, apesar de tudo, as trocas comerciais entre Brasil e Israel. Exportamos combustíveis, óleo bruto e minerais betuminosos (essenciais ao esforço de guerra sionista), carne bovina, soja, minérios de ferro, açúcar, celulose etc., e importamos armas e munições, contribuindo assim para o fortalecimento da indústria militar do terrorismo de Estado. O que falta para o Brasil, enfim, conciliar discurso e prática?
O colapso da águia – E quando a dita “comunidade internacional” se pronunciará sobre as ações brutais das milícias anti-imigrantistas de Trump, que, nos estertores da democracia estadunidense, reeditam a grotesca Schutzstaffel (SS) nazista?
Um país condenado a não ser – Seis meses após o início da gestão, à frente do BC, do escolhido pelo presidente Lula, o Brasil atinge a lamentável marca de maior taxa básica de juros real do mundo (15%), superado apenas pela Turquia. Continuamos, contra a vontade da nação, mas submissos à Faria Lima, sabotando os esforços de uma economia e de um povo que sonham com o desenvolvimento. Os rentistas estão assustados com a queda do desemprego e o crescimento do PIB. Resta saber até quando nós, que torcemos pelo êxito do governo Lula como condição de possibilidade para a sobrevivência de um projeto democrático no horizonte político, teremos que engolir, benevolentes, o argumento de que “em política monetária não se dá cavalo de pau”.
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*Com a colaboração de Pedro Amaral