
Histórias da gastronomia – Foto: Divulgação
Queijo da Serra da Canastra de Minas Gerais, cachaça de Paraty no Rio de Janeiro, cacau do Sul da Bahia, e maçã Fuji da serra de Santa Catarina. O que esses produtos, e muitos outros, têm em comum é mais do que qualidade ou reputação: todos possuem uma Indicação Geográfica (IG), um reconhecimento oficial de que suas características estão diretamente ligadas ao território em que são produzidos. Mas o que existe além da procedência e da qualidade desses produtos?
Essa é a pergunta que orienta o ‘Comida com História’, projeto criado em 2018 pela jornalista e gastrônoma Leyla Spada. A iniciativa investiga e narra as trajetórias que trazem os alimentos brasileiros, suas origens, modos de produção e relações com o território, a cultura e a economia da região. Em 2024, o projeto iniciou uma nova etapa de pesquisa dedicada às Indicações Geográficas (IG) no Brasil, com os primeiros registros feitos em Santa Catarina.
“A IG vai além da geografia. Ela carrega modos de fazer que são passados entre gerações, identidades locais e dinâmicas econômicas que sustentam famílias e regiões inteiras. A comida é, ao mesmo tempo, memória, afetividade e desenvolvimento”, explica Leyla.
Segundo dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), o Brasil conta atualmente com 125 produtos e serviços com IG reconhecida, número que cresceu 35% entre 2020 e 2023, segundo o Sebrae. A certificação pode ocorrer em dois formatos: Indicação de Procedência (IP), que reconhece a reputação de determinada região na produção de um item, e Denominação de Origem (DO), que exige a comprovação da influência direta do meio geográfico sobre as características do produto.

IGs impulsionam economias locais e fortalecem comunidades – Foto: Divulgação
As Indicações Geográficas têm se mostrado ferramentas eficazes para o desenvolvimento econômico regional. Segundo dados do Sebrae e do INPI, os setores intensivos em Direitos de Propriedade Intelectual, que incluem as IGs, representaram 50,2% do PIB brasileiro no período de 2020 a 2022, totalizando R$ 3,76 trilhões. Além disso, esses setores foram responsáveis por 39,7% do emprego formal no país durante o mesmo período.
Além disso, a certificação estimula o turismo, atrai investimentos e promove o desenvolvimento sustentável das comunidades envolvidas. Por exemplo, a região do Vale dos Vinhedos (RS), após obter a IG, observou um aumento no fluxo turístico e na comercialização de seus vinhos, fortalecendo a economia local e gerando empregos.
A trajetória que nasceu com o pomar
Em São Joaquim (SC), a IG da maçã Fuji reconhece não só as condições ideais de clima e solo para o cultivo da fruta, mas também uma história de reinício. Nos anos 1970, famílias japonesas chegaram à região depois de terem fugido da guerra e da falta de trabalho. Foi ali, a mais de mil metros de altitude e sob temperaturas abaixo de zero, que viram oportunidade para recomeçar.
Uma dessas histórias é a do Sr. Yuri, que desembarcou no Brasil aos 10 anos com a família. Com conhecimento agrícola adquirido no estado de São Paulo, onde eles primeiro chegaram, a mudança para a serra catarinense foi o começo de uma trajetória de vida dedicada ao plantio de maçãs. A produção ganhou força e, junto com outros produtores, ele ajudou a fundar a Cooperativa Sanjo, responsável por articular apoio técnico, comercialização e troca de conhecimentos entre os fruticultores da região.
Hoje, São Joaquim é o maior produtor de maçãs do Brasil e a Fuji é sua principal variedade. Reconhecida com IG por apresentar características únicas ligadas ao território, como coloração intensa, doçura acentuada e crocância marcante, a maçã se tornou símbolo de qualidade graças à altitude e ao clima do local.
“Foi um trabalho coletivo. Cada árvore plantada era um passo rumo à estabilidade da nossa família. Hoje, ver meu filho Flávio trabalhando ao meu lado, dando continuidade a esse legado, é motivo de orgulho”, contou Yuri em entrevista ao Comida com História.
Flávio, que praticamente cresceu no pomar, hoje atua no plantio com o apoio da cooperativa, ajudando a manter viva a história iniciada por seu pai, cuidando das mesmas árvores plantadas décadas atrás.

Gastronomia como experiência e conexão – Foto: Divulgação
Com o objetivo de aproximar consumidores, produtores e cozinheiros, o Comida com História realizou em março a primeira edição do Cozinha Show, em Florianópolis (SC). O evento reuniu mais de mil pessoas em torno de degustações, apresentações de produtores, exibição de minidocumentários e rodas de conversa sobre alimentos com IG.
O encontro mostrou, na prática, como a cozinha pode ser ferramenta de pesquisa e de comunicação. Chefs convidados prepararam receitas com ingredientes com IG, enquanto agricultores contaram suas trajetórias ao público.
“A cozinha é nosso laboratório de histórias. Cada prato servido com um produto de origem é uma oportunidade de falar sobre o território, sobre quem produz, sobre o que sustenta uma comunidade. Nosso objetivo é dar rosto e voz a quem está por trás do produto. Cada queijo, cada maçã, cada farinha tem uma história viva. O consumidor precisa saber de onde vem aquilo que chega à sua mesa”, afirma Leyla.
A Indicação Geográfica valoriza o produto e cria oportunidades para pequenos produtores, fortalece cadeias produtivas locais e incentiva o turismo gastronômico. Cada selo reconhecido é, na prática, o resultado de décadas, às vezes séculos, de trabalho coletivo.