Numa cena memorável de “Wall Street – Poder e Glória” (1987), de Oliver Stone, o especulador inescrupuloso Gordon Gekko, interpretado por Michael Douglas, explica a seu pupilo bestificado as regras do jogo em que sempre vence: “O 1% mais rico possui metade da riqueza do país, cinco trilhões de dólares. Noventa por cento dos americanos lá fora possuem pouco ou nenhum patrimônio líquido. […] Eu não crio nada. Eu sou o proprietário. Nós é que fazemos os regulamentos; nós tiramos o coelho da cartola enquanto todo o mundo se pergunta como é que a gente consegue. Mas você não é inocente a ponto de achar que vivemos numa democracia, né, Buddy? É o livre mercado. E você faz parte dele.”
Quando o filme – uma crítica de Stone, filho de um corretor da bolsa de valores, a esse universo amoral e parasitário – foi lançado, Donald John Trump contava 41 anos de idade e comandava o império imobiliário de sua família, com foco em projetos extravagantes de arranha-céus, hotéis e cassinos (aproveitando o crescimento de uma bolha que não tardaria a estourar), e aperfeiçoava o dom de usar a seu favor as facilidades de um sistema financeiro e uma ordem jurídica moldados para beneficiar o homem branco endinheirado. Embevecidos, os meios de comunicação exaltavam o seu “toque de Midas”.
Havendo iniciado sua trajetória na década anterior, Trump estava habituado aos usos e costumes da máfia nova-iorquina, especialmente os capi do setor de construção, como Paul Castellano (chefe da família Gambino) e Anthony “Fat Tony” Salerno (capo do clã Genovese). Além disso, o estrambótico businessmanalardeava seu flerte com a carreira política por meio de entrevistas e anúncios pagos na imprensa, e lançava, com êxito, The Art of the Deal, o primeiro dos livros que assinou, testemunho de seu apreço pela automistificação, pela hipérbole como recurso retórico e pela mentira como ferramenta de trabalho.
A interessante série “Trump – Um sonho americano” (Netflix), conta boa parte dessa história, mostrando características do personagem como a megalomania, a misoginia e o uso instrumental da chantagem e da intimidação, bem como seu narcisismo patológico (registra-se, por exemplo, que ele teria pronunciado um discurso ególatra e triunfalista no enterro do próprio pai). Singularidades à parte, já no título a série deixa claro: Trump é tão americano quanto a torta de maçã.
Talvez esta seja uma pista para interpretarmos a apatia de universidades estadunidenses (a prestigiada Columbia é um exemplo conspícuo), grupos de comunicação, escritórios de advocacia etc. diante dos ataques frontais de Donald, agora presidente reeleito em um pleito consagrador, aos institutos da chamada democracia liberal – como, por exemplo, a liberdade de expressão. Jodi Dean (“Cowardice Is Constagious Too”) observa que esses institutos eram e são falhos, ficando muitas vezes aquém da retórica que os embala e dos ideais que os sustentam… mas agora esses ideais estão sendo simplesmente demolidos. E a reação tem sido tímida.
É como se Trump, com sua linha política centrada na crueldade e no uso da extorsão como prática cotidiana, própria dos chefes mafiosos, retirasse um manto de hipocrisia de sobre um modelo de democracia que de democrático sempre teve muito pouco (como bem sabem os Gordons Gekkos da ficção e do mundo real), ou mostrasse que os pilares do edifício estão comidos por cupim. Por isso, a pensadora socialista evita a armadilha de defender o retorno ao statu quo ante: para ela, a luta contra o extremismo de direita epitomizado pelo magnata não nos deve levar ao resgate de instituições carcomidas, mas à busca de algo melhor: uma nova economia centrada na satisfação de necessidades humanas (e não na geração de lucro), e em “relações sociais de igualdade e respeito mútuo”.
Num ensaio de 2018, “The Cruelty Is the Point”, o jornalista Adam Serwer argumentava que o apelo de Trump junto a uma parcela expressiva do eleitorado não se resumia a queixas de ordem econômica ou “incorreção política”, mas envolvia, ainda, a crueldade compartilhada como mecanismo de união. Seus apoiadores teriam encontrado solidariedade, um chão comum, no ato coletivo de menosprezar os outros – seja rindo das vítimas do furacão em Porto Rico, zombando das mulheres do movimento #MeToo ou ridicularizando pessoas com deficiência. Essa dinâmica, que não nos é estranha, estaria historicamente enraizada, segundo o escriba, na violência racial dos EUA, onde o espetáculo público da crueldade, como os linchamentos de homens negros, foi um aglutinador para algumas comunidades (“As árvores do sul dão uma fruta estranha / Sangue nas folhas e sangue na raiz”, canta Billie Holiday, maravilhosamente, em “Strange Fruit”).
No segundo mandato, como temos visto, a natureza e a intensidade da crueldade evoluíram (e talvez não haja melhor exemplo disso que a grotesca caça a imigrantes por milícias de encapuzados, sobre a qual a “comunidade internacional” tem guardado um silêncio cúmplice): não se trata mais, apenas, de estabelecer laços por meio da humilhação grupal, mas de produzir instabilidade generalizada como estratégia de governança.
Há também um outro fenômeno que permite vislumbrar onde entramos nós nessa história, que é o inegável declínio do império americano: os EUA seguem sendo a principal potência militar, financeira e cultural do mundo, mas sua influência relativa está diminuindo, sobretudo na economia e na diplomacia, enquanto seu maior rival decola. A China (principal parceiro comercial de mais de 130 países, Brasil incluído) produz hoje 30% dos bens manufaturados do mundo (os EUA, 16%) e já ultrapassou a terra do Tio Sam em produção científica, ao mesmo tempo em que forma novas alianças (como o BRICS) que desafiam a liderança global dos EUA e contribuem para a redução da influência de sua moeda: em 2001, o dólar estadunidense representava 72% das reservas cambiais globais; em 2023, esse percentual caíra para 58%.
Trump é, também, uma reação a esse declínio, que sinaliza um reordenamento global.
E isto nos leva, por fim, à carta endereçada a Lula que o mandatário estadunidense, em vez de encaminhar pelos meios adequados, divulgou nas redes sociais na semana passada. Coincidentemente ou não, a mensagem veio a lume no último dia 09/07, quando se encerrava a cúpula do BRICS no Rio de Janeiro, evento em que o Brasil estendera o tapete vermelho a Narendra Modi, líder de uma Índia que é hoje o país mais populoso do mundo, com cerca de 1,450 bilhão de habitantes, PIB de U$ 3,4 trilhões e projeção de crescimento de 6,5% para 2024-2025 (mantendo, assim, um ritmo robusto de expansão, ainda que mais moderado que no biênio anterior).
Com ofensas à gramática, redundâncias e emprego de uma retórica mais afeita a campanha política e propaganda comercial que a instrumentos diplomáticos, inclusive fazendo uso de uma agressividade inadmissível, o petardo de Trump, como já se comentou, parte de um ataque às instituições brasileiras pelos infortúnios do golpista Jair Bolsonaro, e afinal se queixa de um superávit comercial do Brasil em relação aos EUA – algo que não ocorre há mais de 15 anos.
A ameaça do capo – aplicar um tarifaço de 50% a todas as exportações brasileiras para os EUA – decerto pode gerar prejuízos para os nossos setores de manufaturados, agroindústria, petróleo e derivados (entre outros), resultando em desemprego; mas pode também elevar os custos de setores industriais estadunidenses que hoje carecem de insumos brasileiros (como aço, alumínio, celulose), gerando pressão doméstica, e contribuir para estreitar os laços entre Brasília e Beijing.
Extasiado com o próprio umbigo, Donald esquece que tudo tem, ao menos, dois lados.
O fiasco do rugido presidencial, neste caso, se assemelharia ao do cassino Taj Mahal, um de seus muitos empreendimentos fracassados – o qual, afundado em dívidas, entrou em falência apenas um ano após ser inaugurado com pompa e circunstância (patrimônio da humanidade, o magnífico Taj Mahal indiano subiste há quase 4 séculos).
Um dado curioso: investido no papel de bully global, Trump enviara, dois dias antes, cartas idênticas entre si (e quase idênticas à que endereçaria a Lula) aos líderes de Coreia do Sul, Lee Jae-myung, e Japão, Ishiba Shigeru. Também atravessadas por erros gramaticais e problemas de estilo, as cartas padronizadas ostentam um tom autocongratulatório descabido, passam ao largo do que se conhece como diplomacia e ignoram o modo como negociações comerciais se dão entre nações soberanas: ao lado da ameaça de elevação de “Tariffs” (assim mesmo, com maiúscula), o magnata convida os contrapartes a “participar da extraordinária economia dos Estados Unidos”.
Prato cheio para estudos nas áreas de linguística, psicanálise e, claro, relações internacionais.
Reforçando o mergulho no bizarro, e a impressão de que o país de Abraham Lincoln não está sendo governado por um adulto funcional, os perfis da Casa Branca e do próprio Trump no ex-Twitter exibiram, dias depois, uma imagem do presidente retratado como Superman. É, sem dúvida, desafiador interpretar essa avalanche semiótica. Por onde começar? Para o filósofo italiano Franco Berardi, “Trump é a erupção psicótica do inconsciente branco senil; ele é a forma política monstruosa na qual se manifesta a inumerável multidão de fantasmas que assombram a memória e a autopercepção desse povo infeliz”.
A carta ao presidente Lula provocou reações diversas no Brasil, por exemplo: os presidentes da Câmara e do Senado exibiram, juntos, a covardia que deles se espera, o jornalão dos Mesquita teve um arroubo nacionalista inusitado e um diplomata de pijama sentenciou, sabujíssimo, que “o assunto é técnico; politizá-lo é um erro”. Como se habitasse um universo paralelo, o presidenciável governador de SP (que dia desses posou para fotografia exibindo um boné com o lema “Make America Great Again”) saiu-se com esta: “Lula colocou sua ideologia acima da economia, e esse é o resultado.” As redes sociais foram inundadas por expressões de repúdio à agressão norte-americana (com direito a um hilário vampetaço), e uma manifestação em defesa da soberania nacional convocada pelas frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular, além de sindicatos, levou mais de 15 mil pessoas à Avenida Paulista.
Registre-se, para os anais da indignidade de um Congresso que mais e mais se rebaixa: horas após a diatribe de Trump ganhar as manchetes, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, comandada pelo partido do ex-capitão, aprovou uma “moção de louvor” ao mandatário estadunidense. Sem medo ou pejo do ridículo, o proponente da coisa (um deputado fluminense ligado a Silas Malafaia), se permitiu justificar a homenagem “pelo brilhante trabalho desenvolvido por ele como presidente da maior nação e pela incansável luta em defesa da democracia e da liberdade de expressão em todo o planeta”. Uma pérola da vassalagem.
Há quem diga que, na semana que passou, a corrida presidencial de 2026 começou para valer. É possível. Seja como for, o governo Lula finalmente demonstrou acerto na estratégia comunicacional, reagindo com firmeza à agressão, e mostrando que a paralisia pelo medo não funcionará por aqui. O ataque de Trump, pondo a nu o caráter conspiratório, antinacional, de Bolsonaro e sua gangue (que já fornece condições para a prisão cautelar), também os expõe a conflitos com sua própria base; além disso, permite a Lula sair da defensiva e dar passos na direção da frente amplíssima com que sonha a socialdemocracia.
O caminho pelo centro, contudo, tende a ser tortuoso, difícil, como são os ensaios de conciliação de classes neste país moldado pela desigualdade abissal, e dominado por uma elite avessa a compromissos. Vejamos, para refrescar a memória, o que dizia o Valor Online em 21/09/2018, em matéria sobre a queda do dólar, que vinha em trajetória de alta: “O alívio no mercado brasileiro se dá pela leitura de que Jair Bolsonaro se firma como o candidato forte para o 2º turno da eleição presidencial. Por mais que não seja o candidato ideal para parte dos profissionais de mercado, o presidenciável é apontado como o principal ponto de resistência contra a volta de governos à esquerda.”
Nossos Gordons Gekkos – grandes e pequenos – topam tudo, tudo mesmo, para deter qualquer ameaça de redução da desigualdade social, isto é, para evitar a substituição disso que aí está pelo “something better” que, como aponta a camarada Jodi Dean, é algo que podemos conquistar.
*Articulista