Essa trova, de autor cuja identidade minha memória eclipsou, herdamos de meu saudoso e querido Pai, trazido de seu aprendizado de vida na Amazônia boliviana. Ele testemunhara a insólita reação de um pai decepcionado com o filho enviado à Europa para estudar, e que ao retornar após tantos anos, no campo de pouso, tão logo desembarcou da aeronave que o trouxe de volta ao povoado, fez trovinha chinfrim ao declarar seu carinho por seus pais e amigos que o aguardaram todo esse tempo: “Do alto de minha existência, vejo neste firmamento uma linda estrela, pois, com todo o meu encanto, vibro e a saúdo: aiaiai que bela! Aiaiai que bela!”
Decepcionante, não? Imaginem, então, para o pai que fez de tudo para realizar o sonho do filho e se esforçou para mantê-lo durante pelo menos cinco anos — ou talvez bem mais — na ânsia de ver um profissional capaz de antender às carências de seu povoado e, sobretudo, de sua família, e, não mais que por desencanto, depara-se com um bon-vivant que usufruiu de seus suados tostões e, sem demonstrar qualquer empatia por sua gente, põe-se a entoar trovinha insignificante de aprendiz de vigarista.
Longe de representar algo ficcional, trata-se de episódio recorrente, inclusive em nossos dias, embora não com os ricos contornos da indignada e espirituosa reação paterna, digna de constar dos ensinamentos, como advertência, para os recém-egressos da academia. Não apenas porque, sobretudo hoje, vivamos tempos sombrios e nada solidários. Se a sociedade se encontra em processo de profunda decadência, imaginem a academia — reflexo insofismável da própria sociedade –, onde as novas gerações são preparadas, em tese, para contribuir para uma elevação da qualidade de vida — ou, como diriam os iluministas de pouco mais de três séculos atrás, para humanizar / racionalizar as sociedades existentes e contribuir para desenvolver as condições de vida de então.
Dia desses, em um lugar que prefiro não revelar, me deparei com manifestação indigna de um certo “doutor”, de araque, pois conduta assim não coaduna nem com um calouro de graduação. O bizarro cidadão, do “alto” de sua arrogância se dirigiu a uma pessoa muito querida, a quem insinua suposta incapacidade e em tom de deboche lhe dá uma alfinetada. Esqueceu-se o mal parido de que a sua dissertação de mestrado fora, generosa e solidariamente, revista, corrigida e observada por essa pessoa, tanto que acabei sendo testemunha do gesto ímpar.
Como a academia está infestada de espertalhões de toda estirpe! Eu mesmo quarenta anos atrás assisti perplexo a constrangedor fato de falta de caráter de ex-amigo [esclarecendo: amigo era eu, pois ele não passava de raso oportunista que se fingira líder sindical, verdadeiro alpinista social que, aproveitando meus contatos na academia, surfara para granjear uma conquista para ele, não para a categoria, como seria presumível]. Como entre os meus Amigos (com letra maiúscula) costumo ter pessoas de todos os matizes ideológicos, ele não teve escrúpulos e usou a todos, indiscriminadamente, no afã de ser protagonista de uma demanda coletiva que ele decidira privatizar a fim de granjear vantagens. Coisa de espertalhão, de mau-caráter.
Pergunte o/a leitor/a se, depois dessa conquista (para si), o tal “líder sindical” continuou a participar das lutas da categoria, ou, pelo menos, a interagir clara e sinceramente com os que o sucederam no sindicato? O pior é que, décadas mais tarde, um Amigo, digno de ser chamado assim, me revelara que, por pura casualidade, procurara os documentos da construção do sindicato e, pasme, muitos livros e registros anteriores ao mandato do infeliz desapareceram como por encanto. Detalhe: como não era ele o protagonista real (mas o coletivo, a categoria) das justas demandas e, por temer ser eclipsado pela desenvoltura de colegas com perfil mais apropriado que o do triste recalcado, não só surrupiou livros como adulterou atas e memórias de reunião em livros ardilosamente trocados, com o pérfido intuito de varrer desafetos da memória e tergiversar sobre a saga da qual muitos somos testemunhas e ainda estamos aqui.
Quando a ex-presidenta Dilma Rousseff levantou a bandeira da meritocracia eu, incrédulo, me perguntei como alguém cuja história pessoal foi alvo da sanha, perversidade e falta de caráter dos ditos meritocratas, com ou sem farda ou toga, podia dar tamanha chance para o azar? E deu. A História (maiúscula) está para provar. É porque competência, capacidade, é tão relativa e intangível que, a bem da verdade, processo seletivo, concurso público e hipoteticamente até recursos telepáticos não têm chances reais de avaliar com efetividade. Óbvio, trata-se de um mal necessário, até porque não temos outro critério mais objetivo para aferir o mérito para ingressar a um cargo público.
Houve o caso, 25 anos atrás, em órgão de fiscalização tributária, em que um aprendiz de espertalhão tentou dar um jeito de trocar com outro candidato a sua prova e passou entre os mais bem colocados. Mas se deu mal, pois alguém havia assistido à fraude durante a realização da prova e assim que os resultados do concurso foram divulgados, denunciou o ato. Felizmente os envolvidos foram devidamente punidos e, após tal tentativa frustrada de engabelar um processo de seleção de grande credibilidade, foram adotadas medidas mais rígidas.
Diferentemente da academia, os clérigos de várias denominações têm processo pioneiro muito eficaz na seleção de seus membros que a sociedade deveria observar. Não que seja infalível, pois, vez por outra vêm à tona escândalos recorrentes em nossa sociedade, em que a hipocrisia não é menor que a das corporações. As suas vítimas são duplamente punidas e, inclusive, condenadas. Porém é iniciativa da sociedade, não das corporações, a adoção dos critérios para construir efetivamente processo meritocrático mais seguro. Também nisso a materialidade na academia nos lembra a caserna, esta com suas patentes e a outra com seus títulos, que nos remetem aos nobiliários.
Em tempos de inteligência artificial, sem dúvida, esses “méritos” ficarão ainda mais vulneráveis. Tenho visto doutores e mestres com erros grosseiros até de ortografia e concatenação de ideias, o que dá um sincero aperto no coração. Que futuro pode ter a academia se monstrengos praticantes do “cara-crachá” e das questionáveis “euquipes” estão sendo habilitados para usurpar o porvir das futuras gerações? Quando não forma, a academia deforma, perverte. A apatia covarde dos estudantes hoje, por conta das bolsas, é razão dessa submissão. E o digo não só pensando nos espertalhões de instituições de países felizmente distantes de nós cujas façanhas narrei nos parágrafos anteriores.
O “MERCADO” E O “MEC-USAID”
Houve um tempo em que a academia era não só centro excelso da Ciência e espaço generoso do debate sincero e livre, mas relevante usina de formação do caráter, lapidação do talento e, sobretudo, construção da práxis como sinônimo de ética e humanismo. Coisa, lamentavelmente, do passado, pois a decadência material e a corrosão dos princípios fundantes do progresso, na acepção do racionalismo humanista, são triste unanimidade imposta pela mediocridade reinante.
Mas que mediocridade é essa?! Não são todos os que conseguem enxergá-la com acuidade, até porque a coisa é tão generalizada que acaba encoberta pela própria normalização do bizarro, do non sense preponderante. Afinal, sejamos sinceros, o que salta aos olhos são as raras exceções, capazes de serem vistas como insólitas pelas massas manipuladas, pois até na academia as massas são manipuladas — e não estamos nos referindo às massas italianas, que, a bem da verdade, são deliciosas e dignas de nossa mais deslavada cobiça, com todo respeito.
Confesso que a razão pela qual, 40 anos atrás, me dei ao desplante de declinar de convite para participar do processo seletivo para ingressar na carreira de uma universidade, à época bastante prestigiada, foi porque enquanto cursara a licenciatura no período em que me afastei de Corumbá — e, sobretudo, de minha Família — percebi um nítido processo de burocratização dos cursos universitários em todo o Brasil. Até em consequência da adoção dos parâmetros preconizados pelo Acordo MEC-Usaid em 1968 e impostos na forma da Lei Federal nº 5.540/1968, a funesta Lei da Reforma Universitária. Ora, 1984 distava pouco dos horrores das décadas de 1960 e 1970.
Próprio da irreverência juvenil de uma geração em que o recurso do deboche foi desenvolvido como método de enfrentamento aos tontons macoutes do regime de 1964, costumamos nos referir ao Acordo MEC-Usaid como “a cor do mercado” ou “acordo me usa”. E o fazíamos em vermelho, branco e azul, nas cores da potência que promoveu golpes militares e regimes fascistas em nome de uma liberdade para seus interesses inconfessáveis, como a manutenção do atraso em toda a América Latina. Aprendemos a enxergar pelas frestas que a ditadura nos permitia um horizonte maior que o que os algozes possuíam.
Já naquela época era possível sentir o impacto do modelo adotado pelo nefasto regime militar de 1964: um pragmatismo doutrinário, em que o desempenho da academia se expressava em “ranking”, bem ao estilo praticado na metrópole neocolonial do subcontinente setentrional, sem qualquer disfarce ou recurso semântico. Até hoje a ditadura da produtividade acadêmica como critério de avaliação de desempenho e instrumento avalizador de uma meritocracia tecnocrática — algo profundamente questionável — encontra-se divorciada da realidade brasileira, bastante complexa e intrincada, incompreendida pela quase totalidade das elites dirigentes das instituições de ensino, pesquisa e extensão públicas espalhadas pelo país.
Talvez por conta da vigência de instrumentos repressivos de uma legislação draconiana — como, além da própria Lei 5.540/1968, os decretos 228 e 477, de triste memória –, essas questões ainda não eram tão perceptíveis para a grande massa estudantil e o conjunto de docentes dos anos anteriores ao período pós-constituição de 1988 (20 anos depois de 1968, é bom atentar-se para isso). Não esqueçamos de que a LDB pós-1988 só veio a ser aprovada em fins de 1996, isto é, 12 anos depois da promulgação da Constituição Federal de 1988. Com o viés liberal adotado pelo presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso FHC e seu governo medíocre.
E, indiferentemente à construção do arcabouço jurídico brasileiro pertinente à educação universitária, as instituições de ensino, pesquisa e extensão públicas e privadas já se encontravam contaminadas pelo poluído cotidiano de disputas cegas pelo controle dos “guetos” ou “nichos” acadêmicos por grupos que, aos poucos, foram se tornando grupelhos com características predadoras dentro das universidades, sobretudo públicas.
Também é bom não nos esquecermos de que entre 1964 e 1985, graças à “democratização” da oferta de vagas universitárias por um regime em busca de apoio popular, as universidades privadas e faculdades isoladas criadas nesse período ofereciam mais que o dobro de vagas, com o artifício do então “Crédito Educativo”, que além de não resolver a situação do aluno de instituição privada acabava por deixá-lo inadimplente ou à mercê do mercado financeiro, por meio da Caixa Econômica Federal. Foi nesse contexto que despencou a qualidade da formação profissional e ocorreu a queda vertiginosa da formação universitária, e não como hoje seus saudosistas vivem cinicamente a fazer blasfêmia.
Enquanto a sociedade civil se congraçava com júbilo e êxtase ao dedicar-se ao processo de democratização institucional por meio da Constituição Federal e de leis infraconstitucionais — mobilizações legítimas durante a Constituinte de 1987/1988 protagonizadas mediante o Movimento da Reforma Sanitária com a criação do SUS e a implantação do princípio da gratuidade e universalidade das políticas de saúde; do Movimento Criança Constituinte Prioridade Absoluta com a instituição da doutrina da proteção integral em substituição ao (pre)conceito da situação irregular do caduco Código de Menores; do Movimento do Serviço Social Democrático com a criação da LOAS e do SUAS, que acabaram com a filantropia via primeirodamismo em todas as esferas de governo brasileiras –, os diferentes setores da Educação, e particularmente as universidades públicas, tentavam chegar a um consenso, não conseguido, no tocante aos parâmetros da LDB, razão pela qual, a despeito do esforço sobre-humano do relator Darcy Ribeiro, a LDB coroou o início dos retrocessos pós-Constituição Cidadã nas políticas públicas sociais e econômicas, sobretudo nos princípios gerais e no financiamento, ocorridos no governo de FHC.
Precisamente nesse período é que universidades federais de estados menores acabaram se transformando em “incubadoras” de um conjunto de experiências nada ortodoxas, como que houvesse um hiato constitucional e a aparente permissividade reinante contribuísse para a criação de feudos com base em “guetos” ou “nichos” (dependendo do ponto de vista) para que grupos tomassem conta de departamentos, cursos, centros, faculdades e até de fundações de apoio à pesquisa, com resultados catastróficos que a história saberá resgatar e analisar em profundidade e com isenção.
Nesse momento se inicia a indisfarçável decadência das universidades federais, com o esgarçamento do processo, em evolução, da autonomia universitária associada à afirmação de novos parâmetros acadêmicos para a substituição do modelo liberal decorrente do Acordo MEC-Usaid. Esse fenômeno se acentua nos dois mandatos de FHC, cujo ministro Marco Maciel — um reconhecido liberal com formação no regime militar — não hesitou em usar seu know how liberal conservador e empreendeu uma política de fortalecimento dos quadros dirigentes conservadores nas universidades federais brasileiras. O estrago foi grande e, lamentavelmente, irreversível em muitas instituições. Em vez de refletir a evolução das relações sociais e, em particular, das perspectivas do desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, o dia-a-dia das universidades federais foi se caracterizando pelo predomínio da terceirização da gestão de projetos científicos e tecnocientíficos estratégicos e de vanguarda para a soberania científica e tecnológica nacional.
Os governos Lula e Dilma deram importante impulso, ainda que tímido, à afirmação de uma nova política pública para o desenvolvimento científico e tecnológico nacional, criminosamente interrompido pelo ‘brimo’ golpista e seu tresloucado sucessor negacionista. A grande esperança é que neste mandato o Presidente Lula não hesite em fazer a diferença e entre para a História como estadista, tal qual Pepe Mujica, ao permitir que a população brasileira possa usufruir amplo acesso à universidade. Mais que isso, aliás: que sua estrutura seja atualizada com urgência, de modo a assegurar não só acesso às camadas populares e às diversas etnias, classes, gêneros e segmentos; acolhimento humano aos alunos e alunas, sejam eles ou elas de qual perfil forem, e o devido respeito ético, qualidade acadêmica, científica, cultural e humanística que faça jus à vida e, principalmente, à formação humanista em uma instituição superior pública de ensino, pesquisa e extensão. Quem viver verá.
*Ahmad Schabib Hany