Cândido Alberto da Fonseca, Presente!

Nascido em Campo Grande e criado no Rio de Janeiro, onde fez Comunicação Social, o Cineasta e Jornalista Cândido Fonseca foi um incansável e reservado batalhador pelo curso de Jornalismo na UFMS, mas por ser comunista assumido foi acintosamente esnobado pelos que se adonaram do curso em uma UFMS demarcada por feudos e marcada pelo reacionarismo, despolitização e decadência.

Fim de mês assustador este abril que está a passar!

Na fatídica semana em que, primeiro, nos despedimos do Papa Francisco, cujas atitudes abalaram os alicerces de uma Europa carcomida pela herança feudal, servil e colonial-escravista; a seguir, fomos arremessados à nossa insignificância com a partida da eterna e terna Dama da Solidariedade, Dona Eva Granha [aliás, Graña, de origem espanhola, republicana] de Carvalho, que como viveu partiu discreta, e depois a Vida nos assombrou com a insólita partida do maior dos Jornalistas desassossegados que conheci na ainda promissora NovaCap dos anos 1980, metódico, talentoso, irrequieto e irreverente.

Cândido Alberto da Fonseca com Conceição dos Bugres em 1980 – Foto: Divulgação

Candinho para os mais próximos, Candidozinho para o Professor Masao Uetanabaro, seu colega de trabalho na UFMS. Ele, atendendo a convite seu, foi a uma reunião do recém-legalizado Partidão e se lembra do constrangimento por que passou ao não saber cantar o hino A Internacional, entoado ao se iniciar aquele ato público, no alvorecer da Nova República, último encontro seu com o então jovem Jornalista de talento e convicções socialistas que se revelaria cineasta e roteirista com reconhecimento internacional.

Meu primeiro encontro com o querido e agora saudoso Cândido foi em uma atividade da UFMS, então vanguardista, cujo Núcleo Universitário de Serviços Comunitários (NUSC) se destacava sob a chefia da saudosa Professora Maria da Glória Sá Rosa, que deixara uma assessoria na Secretaria de Desenvolvimento de Recursos Humanos em solidariedade ao governador Harry Amorim, tirado do cargo pelas oligarquias que reivindicaram para si o controle, como feudo, do estado nascido para ser modelo, ainda que em plena ditadura.

Como integrantes do movimento estudantil, estavam os membros do DAFEZ (Diretório Acadêmico Félix Zavattaro) no evento inaugural da grande e emblemática iniciativa organizada por Cândido e chancelada, sem reparos, pela Professora Maria da Glória: o primeiro ciclo de palestras, em todos os campi da UFMS, “Perspectivas do Homem no Século XX”. Antônio Callado, Carlos Castello Branco, Newton Carlos, Edgar Carone, José Paulo Netto, Millôr Fernandes, Plínio Marcos, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Jaguar, Ziraldo e muitos outros não menos importantes estiveram nas cidades-sede dos campi em Mato Grosso do Sul para debater sobre as visões de Brasil e de mundo do início da década de 1980.

A vinda, pela primeira vez a Mato Grosso do Sul, de vários jornalistas e intelectuais de renome foi mérito de sua iniciativa e por meio de seus contatos no eixo Rio – São Paulo. Muitos deles estiveram, anos depois, de novo, porque a “intelligentsia” local já conhecia o endereço. Além de talentoso e generosíssimo — não negava contatar “suas fontes” para convidá-las para evento que fosse, inclusive sem dar-lhe os devidos créditos –, Cândido foi um pioneiro para o registro histórico do talento popular, esnobado pelos “donos” da cultura ligados à ditadura. Foi o saudoso estudioso José Octávio Guizo, não por acaso primeiro presidente da Fundação de Cultura de MS, que o fez voltar para o recém-criado estado, tanto que, ainda jovem, foi o primeiro diretor-executivo durante sua brevíssima gestão, interrompida por sua prematura eternização.

Curiosamente, os únicos dois registros do ciclo de palestras “Perspectivas do Homem no Século XX”, na internet, estão em currículo da Plataforma Lattes de uma contemporânea da FADAFI/FUCMT, além, obviamente, de constar dos funestos prontuários do SNI, como o documento de monitoramento a Ziraldo (cinicamente identificado como “marginado” Ziraldo Alves Pinto, desde 1965 até o melancólico final do regime militar, em 1985). É, no mínimo, curioso que evento emblemático daquela dimensão não conste dos anais de uma instituição universitária como a UFMS.

Felizmente não tiveram o mesmo destino o documentário sobre Conceição dos Bugres, de sua autoria, o festival (devidamente eternizado em dois LPs) “Prata da Casa”, também do início da década de 1980 e com o aval incondicional da Professora Maria da Glória. São provas eloquentes de seu talento e ousadia. Mas inúmeras outras iniciativas, vítimas do apagamento institucional do qual ele também foi, deveriam ser resgatadas pelos que o conheceram e com ele conviveram, bem como de sua participação no movimento pela criação do curso de Comunicação Social (Jornalismo) na UFMS no processo de fundação da Associação Profissional dos Jornalistas de Mato Grosso do Sul, início de 1980.

Atrevo-me a dizer que, instituído o curso de Jornalismo em fins da década de 1980, ele foi esnobado por ser abertamente comunista no início da decadência de que a UFMS foi acometida pelos “feudos” que aos poucos se formaram, tanto que muitas pós-graduações stricto sensu foram suspensas por conta desse processo, inicialmente lento, mas hoje virulento. Não por acaso a onda reacionária e atrasada que tomou conta da estrutura dorsal da primeira universidade federal de um estado em que as oligarquias também se adonaram dos destinos da população.

Em 1984, em Corumbá, mediante articulação da candidatura a reitor do Professor Jair Soares Madureira, de saudosa memória, durante a realização, em julho, do VI SEPE (Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão), foi pautada como prioridade a criação do curso de graduação em Comunicação Social (Jornalismo), a esperança era que esse curso fosse de vanguarda, não ideologicamente, mas no sentido da inovação e da visão crítica dos futuros profissionais. Em novembro/dezembro do mesmo ano, durante a realização do I Simpósio sobre Recursos Naturais e Socioeconômicos do Pantanal (que coroou a instalação do CPAP, ou Embrapa Pantanal), em parceria com a UFMS, representando o reitor Jair Madureira esteve em Corumbá o querido e saudoso Professor Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, então chefe de gabinete do reitor. Sou testemunha de que ali precisamente foi resgatado o compromisso de implantar o curso de Jornalismo.

Em meu modesto entendimento, os dois reitores de vanguarda em toda a existência da UFMS foram o Professor Jair Madureira e o Professor Celso Pierezan, cujos mandatos têm a característica do republicanismo, do princípio do interesse público. O problema é que, depois do mandato do Professor Jair Madureira, houve um breve período de insurgência, sobretudo na capital, de grupos deixados à margem no processo de federalização. Isso, ao vermos na atualidade, muito contribuiu para que cursos recém-implantados como o de Jornalismo ficassem à mercê da própria sorte, o que favoreceu a formação de guetos, ou nichos, de poder paralelo.

O contexto permitiu que profissionais como Cândido Fonseca, mesmo trabalhando como servidores, fossem preteridos, sobretudo pela posição ideológica. Afinal, saíamos de uma ditadura de 21 anos havia cinco anos e o primeiro presidente eleito pela via democrática era um “filhote da ditadura”, como a maioria dos governadores e muitos reitores. Recém-promulgada, a própria Constituição Federal de 1988 era até atropelada pelos diferentes núcleos de poder reagrupados no tristemente célebre governo de Fernando Collor.

Para Cândido Fonseca foi até menos complicado: proporcionou-lhe uma pós-graduação na extinta União Soviética e uma especialização em Cuba. Quem perdeu, a rigor, foi a instituição (ou melhor, o curso recém-implantado), o que corresponde dizer que aquela geração de profissionais egressos da UFMS deixou de ter as oportunidades oferecidas por um grande talento, desdenhado por sua opção ideológica e irreverência pessoal. Pois é, creio que seja uma das pouquíssimas universidades do planeta a preterir docentes por critérios comportamentais e ideológicos, não pelos reconhecidos atributos profissionais.

O fato é que Cândido Alberto da Fonseca, do alto de sua capacidade inesgotável de criar, analisar e produzir, fez cinema da forma mais criativa possível, organizou festivais de cinema (até na Espanha e Bolívia), contribuiu para a formulação de políticas públicas que fomentassem o desenvolvimentos das artes visuais e cênicas e, sobretudo, lutou pela valorização dos profissionais da cadeia produtiva do cinema, da dramaturgia, das artes como um todo e, indiscutivelmente, da cultura como instrumento de cidadania e, no dizer das novas gerações, “empoderamento” de segmentos invisibilizados por um Estado dominado por castas herdeiras do processo colonial, de triste memória.

Meu encontro derradeiro com o Primo em segundo grau do querido Ney Fuzeta Péres foi pouco antes da pandemia. Ele, conhecedor da idiossincrasia do breve-trágico desgoverno de Jeanine Áñez, me contatou para que o acompanhasse até a fronteira para embarcá-lo a Santa Cruz de la Sierra, pois era curador do “Festival del Cine Cruceño”, havia poucos anos implantado sob curadoria do Festival Internacional da Espanha, de que foi membro atuante. Estivemos juntos por mais de duas horas, e na hora do embarque no ônibus me presenteou com um exemplar sobre seu primeiro documentário, “Conceição dos Bugres”, e em tom de despedida me revelou seu amor incondicional por Corumbá e o Pantanal. Aquilo me emocionou, mas jamais imaginei que essa fosse sua forma de dizer “até sempre”…

Até sempre, pois, Camarada Cândido! Que tenha valido a pena sua incansável luta: por diversas artes e culturas emancipadoras e libertárias; por uma sociedade mais justa e um mundo menos opressor, e, sobretudo, por uma academia verdadeiramente autônoma e dignificante focada na produção de conhecimento e na formação de profissionais para a Vida, jamais para um mercado abutre e corrupto que amealha o porvir da humanidade para auferir dividendos manchados de sangue para seres avarentos, como os descritos por Bertolt Brecht. Obrigado por ter existido e resistido dignamente!

 *Ahmad Schabib Hany

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