‘Cabeza de Vaca: o andarilho das Américas’, de Raquel Naveira (breves considerações e entrevista autoral)

Tradicionalmente, a poesia tem marcado significativa presença também em reciprocidade com a história. Assim, o fenômeno memorialístico, o fato cultural/social, as referências documentais e as experiências humanas têm povoado o corpus literário. Na contemporaneidade, há nomes expressivos que, em suas produções poéticas, timbram com maestria esta abordagem histórica, instaurando o diferencial da linguagem em face do conhecimento, mantendo no contexto harmônico a leveza do efeito estético e a engajada função crítica e reflexiva da arte da palavra – um destes nomes é o da escritora sul-mato-grossense: Raquel Naveira, que é Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Mackenzie de SP e pertence: à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras/SP, à Academia de Ciências e Letras de Lisboa, e ao PEN Clube do Brasil. Já com dezenas de livros publicados em vários gêneros, inclusive outros romanceiros como Guerra entre Irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai; Caraguatá: poemas inspirados na Guerra do Contestado; e Sob os Cedros do Senhor: poemas inspirados na imigração árabe e armênia em MS, Raquel chega agora com Romanceiro de ‘Cabeza de Vaca – O andarilho das Américas’ (pela Ed. Ibis Libris, RJ), obra que colige relevantes poemas autorais sintetizando a saga do mítico personagem espanhol Don Álvar Núñez Cabeza de Vaca, eclético protagonista de “aventuras homéricas” que “buscou outras fronteiras: a sorte e o risco no Novo Mundo”.  Para conhecermos um pouco mais acerca do contexto acima enfocado, reproduzo, a seguir, trechos de recente entrevista que fiz com a autora:

Raquel Naveira e seu novo livro – Foto/arte: Divulgação

▪ Rubenio Marcelo – Raquel, como nasceu a ideia/motivação para escrever este seu novo livro: Romanceiro de Cabeza de Vaca – O Andarilho das Américas?

Raquel Naveira – Vejo clara confluência entre História e Literatura. O romanceiro é uma atividade poética de origem luso-espanhola, de caráter épico e lírico. Durante a Idade Média era anônimo, transmitido por via oral, poesias ou canções populares que constituíam a literatura poética e nacional de um povo. O meu fascínio por esse gênero literário surgiu na juventude, logo após a leitura do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, que me impressionou demais. Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, o conquistador espanhol nascido em 1488 e que partiu para a América em 1527, realizando fantástica viagem de ponta a ponta pelo Novo Mundo, dos Estados Unidos até as terras brasileiras e paraguaias, foi-me apresentado por Moacir Lacerda, compositor do ‘Grupo ACABA – Canta-dores do Pantanal’, que me desafiou a escrever alguns poemas sobre ele, com a intenção de musicá-los. Percebi que o personagem era incrível e daí nasceu esse romanceiro. A publicação da Íbis Libris ficou primorosa, uma joia: toda ilustrada com imagens medievais.

▪ RM – O que mais lhe fascina na história heroica deste personagem espanhol pouco estudado no nosso país: Don Álvar Núñez Cabeza de Vaca, que lhe inspirou nesta obra?

RN – Um homem de caráter tenaz, que desafiou dificuldades de toda ordem. Cabeza de Vaca explorou o território ocupado hoje pelo Texas e pelos estados mexicanos. Conquistou, graças a seu carisma e inteligência, a simpatia das tribos indígenas por onde passou. Impossível traçar todo o percurso feito por ele. Naquelas longínquas paragens, percorrendo distâncias a pé, ele deparou-se com o Grand Canyon, no Arizona. Viu pela primeira vez, frente a frente, um bisão, o búfalo americano. Foi escravo dos índios, curandeiro iluminado. Chegou à Bolívia e ao Paraguai pelo Caminho do Peabiru, palmilhado por jesuítas. Foi o primeiro europeu a ficar extasiado diante das Cataratas de Iguaçu. Passou pela região do Pantanal, no sul de Mato Grosso. Foi governador em Assunção. Sofreu todo tipo de traições e perseguições e, sobretudo, foi um escritor. Escreveu Naufrágios a partir de suas lembranças, contando suas peripécias e mostrando um rico imaginário.

▪ RM – Como o nosso Pantanal Sul-mato-grossense aparece na saga de Cabeza de Vaca?

RN – Momento impressionante para nós, de Mato Grosso do Sul, quando Cabeza de Vaca se surpreende com o Pantanal e o chama de “Mar de Xaraiés”. É como se o víssemos pela primeira vez através de seus olhos: “Maravilhoso,/ Mar de Xaraiés!”,/ Exclamou Cabeza de Vaca,/ Tonto diante do desconhecido,// Descendo  do convés.”

 ▪ RM – Ao vivenciar a plenitude dos textos poéticos que compõem o livro, impossível é (o leitor atento), além de tudo, não despertar naturalmente a emoção: como, por exemplo, em Maria Marmolejo. É este poema um dos mais emblemáticos do livro?

RN – O toque romântico e erótico, imprescindível num épico, é dado por esse poema, o “Maria Marmolejo”. Era a esposa de Cabeza de Vaca. Há poucas referências a ela. Encaro-a como o símbolo das mulheres que ficaram sozinhas para que os companheiros se aventurassem ao mar: “Partiu…/ O vento era benfazejo/ Para a travessia,/ Fico no cais, noite e dia./ Sou Maria Marmolejo

▪ RM – Em consistente ensaio crítico autoral – acerca do Romanceiro de Cabeza de Vaca -, a Profª Ana Maria Bernaderlli afirma: “Lírica, intimista, mística… assim é a Raquel Naveira que me é mais cotidiana –  mas em palavras da própria escritora/poeta, a História é um universo temático que a inebria sempre”. Pergunto-lhe: – Como exímia tecelã do verso e da prosa, o que mais lhe move na tessitura dos seus romanceiros?

RN – Excelente o ensaio da Profª Ana Maria, jogando luzes sobre o nosso romanceiro. Ela percebeu esse meu interesse pela História, pela compreensão dos acontecimentos da vida humana, que constitui um problema filosófico. Sou ligada à memória, às lembranças, aos relatos, vestígios e sinais. O desvendar das alegorias, dos aspectos fabulosos, da exposição simbólica de fatos, é meu norte. O épico me atrai, esse gênero relativo à epopeia e aos heróis… as composições poéticas narrativas de feitos reais e grandiosos, como a Ilíada e a Odisseia, de Homero; a Eneida, de Virgílio, e Os Lusíadas, de Camões, textos entrelaçados a lendas e fantasias. Creio que a fronteira entre o factual e o ficcional é tênue, como afirmou White: “a mistura entre história e ficção existe, pois o passado é uma construção de linguagem”. Utilizo a imaginação e a capacidade de me colocar no lugar do outro em meus romanceiros.

▪ RM – em outro trecho, diz a Profª Ana Bernardelli: “Há na sequência poética de Cabeza de Vaca a presença da autora que usa da poesia lírica para fundir a realidade objetiva e a realidade subjetiva: o eu e o mundo”. Em face desta assertiva, pergunto: – Além dos horizontes da necessária pesquisa histórica, há ainda/sempre muitos céus?

RN – Concordo mais uma vez. Há uma liberdade de fantasia ao escrever sobre História. Não inventei essas histórias, elas são reais, mas a escolha dos temas e a forma de exposição brotaram de minhas vivências e do meu próprio tempo. Colei-me a uma pesquisa, mas os fatos brutos foram pincelados por minha sensibilidade e por uma interpretação pessoal e única.

▪ RM – Raquel, como fazer para adquirir o livro? Há programação para futuros lançamentos?

RN – Há programação para novas edições, sem lançamentos. O livro pode ser adquirido pelo meu e-mail raquelnaveira@gmail.com e pelo e-mail da editora: ibislibris@gmail.com.

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*Rubenio Marcelo é poeta, escritor, ensaísta e compositor, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, autor de várias obras publicadas, inclusive o livro ‘Vias do Infinito Ser’:  indicado para o triênio PASSE e Vestibular 2021 da UFMS.

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