E se o final desejado não fosse apenas sobre morrer?

Sandra Araujo Hott – Foto: Arquivo Pessoal

Setembro de 2020. Tempo de campanhas salutares sobre o risco de suicídio que vivemos ao longo de todo o ano. Essa possibilidade pode ocorrer em qualquer um dos tipos humanos, e a impossibilidade de atribuição de causalidades absolutas dificulta as ações profiláticas. O desmonte gradativo em nosso país do aparelho de saúde mental estatal torna a busca de socorro sofrível para algo que, muitas vezes, não dá uma segunda chance a quem passa por aquela estrada.

A palavra tabu, refere-se a um conteúdo constrangedor que precisa ser evitado nos discursos como algo proibido. Neste sentido, o silenciamento afeta as falas como se ao pronunciar tal palavra conjurássemos algum tipo de maldição sobre os participantes da roda de conversa. O susto provocado evoca o horror da morte ou Das Unheimliche, o assombro, como nos diria Freud em seu maravilhoso texto de 1919. A morte é algo que nunca pode ser dito, mas contornado apenas, e, do mesmo modo, o ato suicida nos aponta para uma angústia sem fim localizada para além dos véus de fantasia que nos protegem.

Quando a morte nos chega – aliás, ela certamente virá! – toma-nos de surpresa, elucidando que precisamos contar uma história que engendre algum sentido. Saber que somos vulneráveis à morte pode mesmo justificar nossa existência e nossas escolhas. Mas o que se poderia dizer quando alguém se sente invadido por pensamentos recorrentes e intrusivos de interromper deliberadamente a própria vida?

A psicanálise busca sempre a particularidade – um a um – com cada história e desejos únicos. E então, não se pode produzir alguma etiologia comum e razoável, pois a razão nunca dá conta de entendimento a respeito do tema. Entretanto, podemos pensar algumas coisas em torno das decisões mortíferas. Simplificadamente, podemos pensar que viver é escolher, dentro do possível, onde queremos sofrer e perder. Não é possível vencer sempre, mas é certo que decisões têm consequências agradáveis ou desastrosas. Escolher qualquer coisa é simultaneamente “des-escolher” milhares de outras possibilidades. O ato suicida pode ser uma escolha desesperada, onde o sujeito deseja parar de sentir uma dor e em troca, perde todas as outras milhares de escolhas que se encontram ao redor. Mas há olhos para ver? A dor captura de tal modo a atenção e a libido fica presa à dor, girando em torno dela e tudo o mais segue se apagando.

Na luta para eliminar esse mal-estar não dito, o sujeito pode ser capturado pela ideia de fazer parar o sofrimento repetido de algum modo. Porém, o preço e a condição daquela escolha é não sentir mais nada, incluindo as coisas prazerosas da vida. Nunca se trata de simples covardia, mas de uma ação feita num momento de desespero. Pode-se perceber que há ali um desejo de insistir, de sobrepor-se ao sofrer avassalador. E aqui fazemos uma aposta pelo bem-dizer, dizer bem, falar, contar, pois sabemos que recontar arruma as coisas. É comum esse sujeito ter deixado transparecer, muitas vezes de modo tênue, o desejo de que fosse diferente sem saber que cabe unicamente a cada um produzir essa diferença existencial que tanto almeja.

Escute! Coisa mais difícil em nossos dias individualistas-lacradores-fila-andantes! Mas, insisto: escute o outro humano e escute-se! Intimidade é algo tão precioso, e expor nossa vulnerabilidade diante da vida a alguém pode ser uma aprendizagem incrível. Ouvindo de perto, podemos muitas vezes colher esses sussurros e pedidos de ajuda onde as ruas se encontram travadas. O acolhimento pode gerar algum primeiro sentido de oportunidade, uma vontade de tentar criar uma vida possível. Talvez, com esse primeiro abraço, o sujeito possa escolher dar mais uma chance para mudar o rumo da proza, buscando ajuda especializada a um profissional de saúde mental, que possa oferecer amparo nesse percurso desafiador.

É comum observarmos uma associação entre suicídio e depressão, que, por sua vez, é muito mais do que uma tristeza profunda. Tristeza é sentimento e não há psicofármacos para sentimentos, mas apenas um processo analítico pode socorrer nesses casos. Muitas vezes vemos o ato chegando aos pensamentos de quem exibia sorrisos e felicidade. Novamente, intimidade e proximidade parecem sempre falar. Aproximação afetiva exige tempo e interesse verdadeiros no outro, coisa démodé demais atualmente. Talvez nos caiba pensar um pouco sobre o tipo de humanos que nos tornamos e se isso é efetivamente a escolha mais feliz para a humanidade. Se a vida do outro não me importa, a quem minha breve existência poderia importar? Estamos nos referindo aos laços de afeto.

A decisão pela vida passa pelo desejo de ficar, de insistir na vida, mas há sempre muita luta antes do momento crítico se instalar. Força há, e muita! O que o sujeito suicida mais fez foi lutar. E agora, é preciso enfrentar mais um pouco de guerra para manter seu desejo de insistir vivendo. O sujeito com ideias suicidas – já dissemos, qualquer humano vivo – está exausto e pensa em desistir dos laços de afeto com o seu mundo. O sujeito sente-se absorvido na dor e não consegue mais seguir sonhado.

A psicanálise aposta na construção de novos laços com novos sonhos, buscando novos objetos de amor e para isso o desejo desperto é fundamental. Que possamos nessa existência seguir fazendo laços, e tentando sobrepor à dor da miséria afetiva, alguma felicidade possível para que uma vida mais interessante possa se construir. Essa é uma aposta que o caminho da psicanálise propõe. Então, conte-me mais sobre isso que em ti insiste!

(*) Com formação e mestrado em psicologia pela UFRJ, Sandra Araujo Hott é psicanalista, professora e supervisora clínica. Sandra tem 25 anos de experiência clínica e mais de 20 anos como professora e supervisora. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Topo