A estranheza nossa de cada dia

Jorge Miklos – Foto: Arquivo Pessoal

Por muitos anos o ritmo dançante da canção ‘A Luz de Tieta’, de Caetano Veloso, distraiu a minha atenção para a perspicácia dos versos que cito na epígrafe que abre este texto. Anos depois, recebi uma carta que trazia os versos como abertura: “Existe alguém em nós; Em muito dentre nós esse alguém; Que brilha mais do que milhões de sóis; E que a escuridão conhece também”.

O poeta inicia a estrofe indicando que há “alguém” em nós. Um familiar desconhecido – para citar o célebre livro de Sigmund Freud que chamou esse alguém em nós por Unheimliche. Sem tradução literal, o termo Unheimliche aponta para o inquietante, o estranho-familiar ou a inquietante estranheza. Trata-se no limite de algo em nós que não é propriamente desconhecido, mas estranhamente familiar e que nos suscita angústia, confusão e estranhamento. Remonta àquilo que é em nós o conhecido, mas secretamente recôndito, silenciado.

Talvez esse seja esse o sentido que o poeta captou: a condição humana é marcada pela diversidade na unidade. Somos uma identidade matizada por múltiplos sentidos, um multiverso de forças opostas que se conflitam e se integram constituindo a anatomia mais básica da psique humana.

Obstante à sabedoria expressa pelo poeta, a sociedade impõe a homens e mulheres um padrão único de existência. Contrariando a diversidade plural constituinte do pluriverso, os sistemas de dominação social constituem ideologias que reforçam e disseminam estereótipos de masculinidade esquartejando a diversidade em prol de um padrão estabelecido.

Para adaptarem-se ao padrão social, muitos homens precisam amputar aspectos significativos do seu ser ou estender aspectos estranhos para corresponder às expectativas do machismo cultural. O padrão institui aos homens que o tamanho do pênis regula a sua masculinidade; sentencia que não há espaço para demonstrar sentimentos; treina os adolescentes para que percebam que a masculinidade do homem é mensurável pelo dinheiro, pela marca do carro e pelo sucesso profissional.

Uma vez que a essência deve ser suprimida em prol do estereótipo, a adaptação ao padrão compromete a complexidade do ser humano, engaiolando-o no sistema patriarcal. O homem torna-se prisioneiro de uma jaula de aço na qual ele mesmo é parte dessa jaula performando uma das grades.

Reprimir a diversidade tem um custo para os homens. Eles se tornam estranhos para eles mesmos. Estranhos dentro de sua casa, estranhos em seu corpo. Esse estranhamento obscurece ainda mais o sombrio impelindo ao desconhecimento de si próprio. Não se pode supor que exista uma versão universal de masculinidade. Mesmo que haja uma versão hegemônica, ela nunca será única. É nesse sentido que não podemos falar em masculinidade no singular.

Em 1967, Caetano Veloso estreou sua carreira de sucesso cantando: Caminhando contra o vento; sem lenço sem documento; eu vou. Caminhemos contra a domesticação da diversidade para seguir vivendo com muita Alegria, alegria.

*Jorge Miklos é Sociólogo e Analista Junguiano. Atualmente dirige uma pesquisa a respeito das masculinidades contemporâneas no Brasil.

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