Felicidade Tóxica

Jorge Miklos – Foto: Arquivo Pessoal

“Não há possibilidade alguma de ele (programa da felicidade) ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída nos planos da Criação.” (Sigmund Freud em O mal-estar na civilização)

“A psicologia convencional nasceu para tentar entender o que torna alguém neurótico, deprimido, ansioso, de mal com o mundo. Depois de anos nessa toada, achei melhor procurar compreender o que faz alguém feliz.” (Matin Seligman em A Felicidade Autêntica)

Contrariando o diagnóstico do pai da psicanálise, para quem “a felicidade não se acha incluída nos planos da criação”, Martin Seligman, um dos principais divulgadores da Psicologia Positiva, aposta na construção de pessoas “cronicamente felizes”, nos dizeres do professor João Freire Filho.

Na contramão da filosofia romântica, para quem a felicidade era um estado transitório e ilusório, o novo espírito do capitalismo emocional – “uma cultura em que práticas e discursos emocionais e econômicos se configuram mutuamente” (Illouz apud Freire Filho, 2012: 57) – difunde pelo marketing que a felicidade é um ‘bem subjetivo’, um ‘capital psicológico’ passível de ser acumulado e investido bem como “um combustível importante para quem pretende crescer na carreira”. (Ibidem)

Freire Filho aponta que: no contexto do capitalismo contemporâneo que monetiza afetos convertendo-os “em aspectos essenciais do comportamento econômico e em que a vida emocional segue a lógica do intercâmbio e das relações econômicas” (Ibidem), “a sensação de felicidade permite que a pessoa produza mais e ocupe uma posição mais alta” (Ibidem). Ou seja, a felicidade é uma commodity imaterial (Gorz), um recurso estratégico para otimização da saúde, da sociabilidade e da produtividade.

A felicidade seria, portanto, o combustível indispensável para a adaptabilidade do indivíduo na “sociedade do cansaço”, definida pelo filósofo Byung-Chul Han como uma sociedade que estabelece modos de vida que se expressam por um excesso ou tirania da alta performance e da positividade, produzindo sujeitos que devem buscar sempre superar-se com relação aos seus ganhos. Com isso, são engendradas subjetividades e sociabilidades agenciadas pela multitarefa e constante (auto)produção. Nessa lógica, para as pessoas alcançarem alto rendimento no trabalho, elas precisariam buscar ferramentas para elevar o seu coeficiente de felicidade.

Com esse fim, surgem e crescem as novas ciências instrumentais como a Psicologia Positiva, a Neurociência e seus apêndices fast foods como os coachings, autoajudas e toda sorte de espiritualidades gerenciais.

Para Freire Filho, vivemos “na era da felicidade, sua reprodutibilidade científica” em que diversos saberes técnicos oferecem a possibilidade de construir pessoas “cronicamente felizes”, isto é, as novas ciências da felicidade nos ensinam que usufruir de um aumento sustentável de nosso bem-estar subjetivo é um projeto individual totalmente factível”.

Freire Filho assevera que: “vivemos na era do prodigioso otimismo: múltiplas fontes acadêmicas e midiáticas irradiam a convicção de que a ciência é capaz de indicar-nos, passo a passo, como robustecer os mananciais biológicos e psicológicos de uma existência “cronicamente feliz”. (Ibidem, p. 54).

As ciências da felicidade ofertam a promessa do controle, da metrificação da vida cotidiana. Oferecem a ilusão da segurança frente a um mundo cada vez mais inseguro. Ensinam controles sobre quase tudo: quantidade de passos, calorias, respiração, batimentos cardíacos, pressão arterial, peso, alimentação, horas de sono, sexo, ovulação, entre outras inúmeras atividades. Constroem gadgets que monitoram nossas vidas. Com eles, estabelecemos metas e controlamos resultados. Tudo em nome do melhor de você em você mesmo.

Dessa forma, essas técnicas oferecem às pessoas o gerenciamento da vida em busca da alta performance: autoconfiança, ambição, entusiasmo, criatividade, espírito empreendedor. Pessoas dotadas desse capital psicológico positivo estariam mais perto de uma alta performance feliz. São ferramentas em benefício da produtividade e da alta performance. Tudo em proveito da indústria da saúde e do sucesso, do ótimo desempenho e da felicidade.

Independentemente de faixa etária, gênero, classe socioeconômica, situação familiar ou afetiva, (in)definição profissional etc., as regras do bem viver — leia-se do viver feliz — devem ser seguidas à risca para que não se padeça dos horrores da rejeição, do ostracismo ou do escárnio.

O contato social prescreve que para se atingir a felicidade almejada universalmente, “pecados imperdoáveis” como excesso de peso, sinais de envelhecimento, fadiga, fraqueza, hesitações, inseguranças e incertezas, o tédio, os diversos tipos de padecimento e, sobretudo, a dor de existir que nos fazem humanos, quiçá demasiadamente humanos, devem ser evitados a todo custo. É como se a própria condição humana estivesse sendo colocada em xeque nessa era da felicidade compulsiva e compulsória.

Como anuncia Freire Filho, “a exortação ao acúmulo incessante de felicidade pode converter-se em fonte de tremendas inquietudes e frustrações”. (Ibidem, p. 58). Ao que parece, a compulsão pela felicidade (bem como pela alta performance) produz sofrimento em série para aqueles que não enxergam que a expectativa, as metas de felicidade são irrealizáveis.

Pessoas que não respondem ao imperativo da felicidade, são repelidas ou patologizadas por simplesmente não responderem ou se distanciarem das normas de positividade. Reparem que hoje não podemos manifestar nossa inquietude ou nosso incômodo, somos diagnosticados com transtorno de ansiedade. Não podemos variar de humor – somos bipolares. Não ficamos mais tristes ou desiludidos – precisamos tratar a nossa depressão. A felicidade crônica impulsiona a medicalização da vida. “Ser feliz é alvo ideal do fracassado” escreveu o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. A obsessão pela felicidade produz muita infelicidade.

Entre o pessimismo paralisante de Freud e o otimismo alienante de Seligman, fico com Vinícius de Moraes que propõe a força criativa da tristeza:

 “É melhor ser alegre que ser triste/ Alegria é a melhor coisa que existe/ É assim como a luz no coração/ Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza/É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não!”

 

*Jorge Miklos é sociólogo, psicólogo e psicanalista na abordagem analítica integrativa. É mestre em Ciências da Religião e doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trabalha na interface entre Psicanálise, Religião e Cultura. Suas reflexões abordam o vínculo social, o mito, a literatura, o cinema, a cibercultura, os conflitos, a política e as questões contemporâneas como gênero, masculinidades, religião, vida digital e diversidade. Atua como Professor e Pesquisador no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista.

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