A mala do mula

Não é do Lula. Mesmo que a hoje “maioria silenciosa” fosse ao delírio se assim tivesse sido. Aquela mesma que, há menos de um ano, vestida das cores da seleção tomava as ruas para (sic) “salvar o Brasil”. Pelo silêncio das panelas e patos, já foi salvo, a despeito da queda do PIB, da estagflação, do aumento do desemprego e da entrega da base de Alcântara, da Embraer, dos campos do pré-sal…

Trata-se nada menos que da mala do mula, integrante da comitiva oficial brasileira, membro da tripulação do avião presidencial reserva com destino a Tóquio, flagrado no aeroporto de Sevilha, capital da Andaluzia, Espanha, com vergonhosos 39 quilos de cocaína. Pelo ordenamento jurídico espanhol, “atentado à saúde pública”, crime inafiançável e imprescritível.

Segundo nossa legislação, no mínimo, tráfico internacional de drogas com alguns agravantes (prevaricação, concussão, formação de quadrilha etc, além do enquadramento na Justiça Militar). Mas, de acordo com a atual narrativa presidencial, “bandido bom é bandido morto”. Esperemos sentados, pois o sinistro Abraham Weintraub, da (falta de) Educação, já relevou o caso, levando em conta o peso dos ex-presidentes Lula e Dilma, comparados por ele à substância alucinógena transportada criminosamente na comitiva oficial de seu chefe. Cabe, no mínimo, interpelação desse funcionário.

Praticamente no mesmo momento o “superministro” Sérgio Moro postava uma self diante da sede da DEA, órgão americano de combate às drogas, em sua viagem aos Estados Unidos sem agenda pública. Sabe, sim, o ex-célebre juiz que, pelo menos no Executivo e no Legislativo, até os presidentes da República, da Câmara e do Senado devem satisfação ao erário e ao público, por isso precisam expor com transparência os motivos de sua viagem, em tese, a serviço do Brasil. E diante da repercussão do caso, para decepção dos defensores de seu punitivismo radical com que ganhou fama, faz uma pífia declaração antes da apuração, minimizando o episódio ao twitar que se trata de “ínfima exceção”, quando o tráfico de drogas é o segundo crime mais comum na Justiça Militar.

Ao contrário do general Santos Cruz, ex-secretário-geral da Presidência, que revelou no congresso da ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) que o núcleo duro do governo “age como uma gangue” e que “é muito dinheiro jogado pelo ralo”, o general Mourão, no exercício da presidência, chamou o sargento de “mula qualificado” mas o general Heleno viu “falta de sorte”, ele que é responsável pela Segurança Institucional e vive a reivindicar prisão perpétua para Lula.

Alguns meses atrás, o Amigo Luiz Taques, renomado Jornalista e Escritor, ofertou generosamente ao público leitor — obviamente, não será o caso dos alucinados seguidores do (sic) “guru” Olavo de Carvalho, que não costumam ler além de três linhas — a novela-reportagem “Mulas” prefaciada pelo genial Amigo Jornalista e Poeta Edson Moraes, em que denuncia o maniqueísmo oportunista das autoridades ante a estereotipia cômoda da criminalização dos moradores da fronteira. Ao converter a dialética realidade fronteiriça em primorosa ficção, Taques faz um diagnóstico profundo de uma lógica perversa que não se restringe à região em que nasceu e passou sua infância.

E acaba de constatar o escritor com faro apurado de repórter que nem o coração do poder central está livre dos traços dessa realidade, ainda que os atuais inquilinos bradem o contrário. Acontece que não há “traficante solitário”: feito fio da meada, quando se pega um mula — geralmente por delação do capo ou de uma quadrilha concorrente — acaba por vir o novelo todo, para desespero das elites hipócritas que prometeram a si e a outros “idiotas inúteis” um país hollywoodiano livre de pobres, problemas sociais e, sobretudo, justiça social.

Portanto, não se trata de falta de sorte, como disse o general Heleno, e muito menos de ínfima exceção, no dizer do ex-juiz Moro: a realidade se impõe aos deslumbrados e assemelhados, a lhes ensinar que nem heróis nem vilões fazem história, mas o povo, a humanidade liberta de déspotas e tiranetes serviçais de um império decadente que produz e reproduz essa relação mórbida, tão somente para saciar seus devaneios narcisistas e auferir riqueza e poder real em sua nefasta existência.

Quebra cabeça ou fio da meada, não se devem relevar os recorrentes vínculos de personagens muito próximos a milicianos como o tristemente célebre Queiroz, além de vizinhos de condomínio da família do chefe de governo. Todo contubérnio deve ser institucionalmente eliminado, com transparência e sem seletividade. Sob pena de ver o Brasil rebaixado a republiqueta de tiranetes traficantes, como lamentavelmente tivemos nossa querida Bolívia nos tempos do sanguinário Hugo Banzer Suárez, cuja “conje”, Yolanda Prada de Banzer, passou pelo constrangimento de ter em sua comitiva um membro flagrado no Aeroporto de Congonhas (Cumbica ainda não havia sido construído) com uma mala recheada do maldito pó, embora em menor quantidade (não chegava a dez quilos), episódio narrado em “Com a pólvora na boca”, do Historiador Júlio José Chiavenatto, e “La veta blanca” (“O veio branco”, em português), do Jornalista René Bascopé Aspiazu (diretor do emblemático semanário boliviano “Aquí”, fundado pelo Padre Luis Espinal, assassinado ao lado do líder socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz durante o golpe dos narcogenerais comandados pelos sanguinários García Meza, Arce Gómez e Natusch Busch).

*Ahmad Schabib Hany

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