A Beleza, o tempo e a cobiça na Serra da Bodoquena

O professor e Biólogo José Sabino publicou nesta segunda-feira (20) o artigo "A beleza, o tempo e a cobiça na Serra da Bodoquena", no portal Conexão Planeta.

Nascente do Rio Olho D’água, na RPPN Fazenda Cabeceira do Prata, em Jardim (MS). – Foto: José Sabino

O texto fala sobre a biodiversidade existente, além das belezas subaquáticas dos rios da região e, da importância em preservar a Serra da Bodoquena”.

Leia o texto de José Sabino abaixo:

As águas cristalinas que fluem pela Serra da Bodoquena, no Mato Grosso do Sul, deram fama mundial à região. Rios e riachos cravejados de vida serpenteiam pelo planalto em direção à planície pantaneira. Como artérias, irrigam uma das regiões mais fabulosas do Brasil. Quase cem espécies de peixes nadam em cenários idílicos, emoldurados por uma miríade de plantas aquáticas e criaturas inimagináveis. Formam verdadeiros tesouros naturais.

As águas límpidas do Olho d’Água (foto acima) permitem que os tons de verde das plantas aquáticas e o movimento calmo dos peixes “rivalizem” com as florestas ripárias. Atividades turísticas de flutuação com snorkel são desenvolvidas na região de Bonito e propiciam aos turistas a chance de observar a grande biodiversidade submersa – e emersa – da região da Serra da Bodoquena. Rios, como o Olho d´Água, fluem protegidos pela densa floresta e passam a ser estimados por toda sua grandiosidade biológica. A foto é de Oliver Lucanus (Fish and Forest Project).

Esses ecossistemas aquáticos abrigam, a um só tempo, uma combinação incomum: elevada concentração de biodiversidade imersa em águas absolutamente cristalinas. Dezenas de cachoeiras e cavernas completam os cenários da Bodoquena, onde se localizam Bonito e Jardim, para citar apenas os dois municípios mais conhecidos.

Lamentavelmente, este paraíso sofre ameaças. A mais aparente – mas não única – é o turvamento das águas de alguns rios, como o Formoso e o Prata. Eventos de turvamento têm ocorrido em escala regional, com intensidade e frequência que não aconteciam no passado recente. A famosa transparência das águas revela também o lado mais atrasado de parcela do agronegócio que usa tecnologia do século 21, mas eticamente ancorou no século 19. 

Entre 2012 e 2018, apenas no município de Bonito, a área dedicada à agricultura saiu de 15 mil hectares para atuais 52 mil hectares. A mudança no uso do solo– dominada pela expansão agrícola– não seria problema se a legislação fosse cumprida e boas práticas de manejo e conservação tivessem sido adotadas. Sem os cuidados com o solo, ocorre erosão e a terra é levada para os rios.  

A pressão para a mudança da matriz de produção da pecuária de corte para a agricultura de larga escala foi detectada por Edmundo Dineli, ainda em sua primeira passagem como Secretário de Meio Ambiente de Bonito. Dineli ressalta que, a despeito da experiência acumuladas em gestões anteriores, “há uma pressão econômica muito grande, porque além das paisagens, Bonito é privilegiado por ter também solos férteis, de alto potencial agrícola. O desafio é conciliar as atividades”, destaca. 

Para o Promotor de Bonito, Alexandre Estuque Júnior, a mobilização da sociedade que ora ocorre – incluindo o envolvimento da OAB-MS e de autoridades municipais e estaduais – demonstra a importância e a fragilidade dos ambientes da Serra da Bodoquena. Contudo, Estuque ressalta a deficiência dos órgãos públicos para efetivar a fiscalização. “Para poder cobrar, os órgãos ambientais têm que ter estrutura mínima, mas independentemente disso o Ministério Público Estadual instaurou inquéritos civis para apurar a falta de APPs(Áreas de Preservação Permanente) e os eventos de turvamento dos rios”. 

Como toda paisagem, a Serra da Bodoquena tem muito o que contar. A História Natural– medida em milhões de anos – nos mostra uma região geológica especial, formada por rochas calcárias que se dissolvem lentamente e conferem a transparência das águas, cenário da vasta biodiversidade. Como contraponto, a História Humana– relatada em séculos e décadas – revela contradições que vão do encantamento com a beleza das paisagens à ganância da ocupação abusiva. Capítulos recentes dessa história desnudam a ocupação do solo de modo a não respeitar limites da Lei e do bom-senso. Mapeia a cobiça de alguns, com a cumplicidade míope de parte do poder público.  

Geologia, ambientes e espécies, sabemos, são dinâmicos. Ecossistemas surgem e se perdem ao longo do tempo. O problema é que os ambientes estão sendo alterados em uma velocidade tamanha que não damos conta de conter os impactos. Rios que há milênios mantinham sua dinâmica natural, agora são afetados com a mudança da paisagem radicalmente imposta pelo homem. 

Não é de hoje que a Serra da Bodoquena se lança como elemento definidor da paisagem desses confins do Brasil. Mais de 500 milhões de anos esculpiram ambientes majestosos – como a Gruta do Lago Azul, o Abismo Anhumas e o Rio Olho d´Água– e permitiram que, nas últimas décadas, fosse criado um modelo que é referência mundial para o turismo sustentável. 

A comunidade local – formada por alguns fazendeiros, empresários, guias e moradores – soube explorar de maneira a gerar uma excepcional cadeia produtiva baseada no turismo. Apenas em 2017, aproximadamente 210 mil turistas visitaram Bonito e região, gerando R$ 305 milhões para a economia local. Não é pouco, especialmente considerando uma cidade com pouco mais de 20 mil habitantes, dos quais 7 mil moradores estão envolvidos com o turismo.

Mesmo que peixes não tenham o carisma nem a popularidade de animais como araras-azuis, tamanduás-bandeira e onças-pintadas, em Bonito a fauna aquática é a estrela. Quem flutua nos rios cristalinos da região mergulha numa experiência transformadora. Do leito dos rios e nascentes, as águas brotam como que em movimentos hipnóticos e a transparência revela uma infinidade de formas e cores. Em meio a essa vivência, rios deixam de ser apenas locais para retirada de água e depósito de dejetos. Subvertem nosso imaginário: águas viram ecossistemas vivos, repletos de biodiversidade.

Em defesa desses ambientes, surgiu recentemente um vigoroso movimento que revela a preocupação e o desejo da comunidade pela conservação dos ecossistemas aquáticos da Serra da Bodoquena. Como os conquistadores do passado, buscam prosperidade, mas agora baseada em novos valores. Tempo, homem e natureza se reencontram numa nova visão, à procura do bem coletivo e da sustentabilidade. 

Sociedades humanas apreciam bons exemplos. A região da Serra da Bodoquena era até pouco tempo um dos raros exemplos de coexistência de diferentes atividades, como agricultura, pecuária e ecoturismo. Todo esforço que for feito para retomada desse modelo será respeitável, notadamente com medidas que ordenem o uso da terra, incluído aí o zoneamento ecológico econômico – ZEE. 

Cenários que serviram para a longa edificação da biodiversidade, não podem ser destruídos por valores individuais. No Brasil de hoje, extremado e blindado ao diálogo, o desejo da maioria é que a história seja contada pela nossa capacidade de coexistir”.

O autor

José Sabino: Biólogo, doutor em Ecologia pela Unicamp e mestre em Zoologia pela Unesp. É professor e pesquisador da Universidade Anhanguera-Uniderp, onde coordena o Projeto Peixes de Bonito. Trabalha com comportamento animal e biodiversidade, além de dedicar especial atenção à divulgação e à compreensão pública da ciência. Desde 2000, vive no Mato Grosso do Sul – perto do Pantanal e de Bonito – com sua família e outros bichos.

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